O casal mentira

Tudo aconteceu muito rápido, eles se conheceram e não gostaram um do outro. Mesmo assim, em menos de três meses estavam casados e foram morar em um apartamento, em Copacabana, que ambos detestaram à primeira vista. Ele a achava feia, sem graça e meio pançuda. Quando falava com ela dizia que era a mulher mais sensual do mundo. Ela acordava mais cedo para não ter de enfrentar o bafo de onça do marido descabelado. Seguia para um banheiro e só saía depois de ouvir correndo a água do chuveiro do outro. O café da manhã era o primeiro festival de mentira do dia. Ele a chamava de chuchuzinho e ela respondia com um sorriso encaretado que ele era o seu ursinho careca.

O casal mentira seguia cada um para o seu trabalho, um oásis no meio do conto assombrado que se propuseram a viver. À noite, quando se reencontravam, o festival esquentava, ele ligava a TV para um futebol e perguntava se ela queria ajuda na cozinha. Ela seguia para os afazeres do jantar e respondia que apreciava a companhia do marido, mas preferia a cozinha na solidão. Tudo mentira. Ele não queria entrar na cozinha e ela não queria a sua companhia. Se um dos dois resolvesse falar a verdade, haveria congelamento de expectativas e gestos.

Quando terminavam a noite na cama, o festival atingia o ápice. Ele era sem paciência e ela era demorada. Revezavam nos gozos sem combinação. Um dia ele perseverava na pançuda, no outro ela fingia bem fingido para acabar logo e o urso descansar. A mentira era a verdade da vida dos dois, até certo dia em que ela perdeu a hora e ele acordou com gosto de menta. Levantaram juntos, ele entrou na cozinha e a ajudou a fazer café, saíram ao mesmo tempo para  trabalho e quando voltaram à noite, pediram a separação ao mesmo tempo. Para eles, viver na mentira havia sido mais fácil.

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Infinito enquanto dura

Há quatro anos, acompanhando meu pai em sua consulta médica regular, conversando, ele contou ao médico que estava casado com minha mãe há 46 anos, sua namorada há 51, como ele gostava de enfatizar. Eles assistiam à tv de mãos dadas e liam o pensamento um do outro. Na próxima sexta-feira, dia 20 de julho de 2012, eles completariam 50 anos de casados, Bodas de Ouro. Mamãe havia começado a planejar a festa, mas não deu tempo.

Naquele dia, voltei para casa pensando nessa eternidade de sentimento. Um só amor por mais de cinquenta anos. Qual a fórmula ou como é que eles conseguiam? Não conheço quase ninguém de minha geração que ainda esteja junto de seu primeiro amor, ou em seu primeiro casamento. Frise-se o quase.

Tive grandes amores. Eles foram o que chamo de sucessos finitos. Como escreveu o poetinha Vinícius, repetido à exaustão, “(…) Eu possa dizer do amor (que tive): /que não seja imortal, posto que é chama/ mas que seja infinito enquanto dure.” Meus amores foram infinitos em sua finitude. Não foram muitos, foram grandes. Imensos, maiores que eu mesma. Enquanto duraram, foram o paraíso, e no momento de suas mortes, o inferno. Dores de amores doem. Muito. Repetindo: Muito.

Com o passar dos anos – e dos amores – vamos amadurecendo o amor em nós. Ou eu vou, melhor falar na primeira pessoa. Mas… Talvez seja mais fácil na segunda: Você vai desconfiada/o, coloca mil barreiras, menospreza, fala com você mesma/o que não é bem daquele jeito que a banda toca. Que muita água há de correr e que tudo o que você quer é correr dali. Acende um sinal de Perigo! Piscante, luminoso, vermelho, com uma buzina infernal. Muitas vezes, você simplesmente desiste. Dá muito trabalho, tem kit abacaxi… Poucas outras, paga para ver. A essa altura do campeonato da vida, já sabendo dos riscos que corre. Mas… Sabe lá? Quem desistiu do encontro? Quem desistiu de tentar?

E quando você olha no olho, segura a mão e ouve a palavra-mais-que-perfeita no momento-mais-que-perfeito? É óbvio, que quando a esmola é demais, o santo desconfia, mas se ele estiver distraído na hora? Aí, então, com toda sua capacidade de análise de riscos e oportunidades você faz uso do seu melhor julgamento e mergulha de cabeça em um lago de profundidades desconhecidas.

É assim que surgem e são vividos os grandes amores. Na primeira pessoa do singular. No caso, plural. Ah, já não sei mais… Só sei que sexta que vem, a família reduzida, desfalcada de seu mais generoso participante, jantará em homenagem ao amor que se transforma e, dessa forma, permanece para a eternidade.