Tempo de reescrever

Seis anos desde a última escrita aqui representam uma eternidade de acontecimentos na vida e no mundo. A começar pelos mais recentes e trágicos, dois anos (and counting) de pandemia de Covid-19 e a guerra na Europa, mais comentada não exatamente por causa “das pessoas loiras e de olhos claros” envolvidas no conflito, como muitos disseram, mas pelo relógio que contabiliza o perigo de nosso planeta acabar com uma guerra nuclear: “it is 100 seconds to midnight”, como mostra o Doomsday clock.

Longe do confronto, mas ainda dentro da praga que paralisou e redefiniu sentimentos, tivemos a honra, a alegria e a possibilidade de receber meu irmão de alma e sua mãe em nossa casa por alguns dias, em fevereiro. Não foram férias, já que nós dois estávamos trabalhando remotamente, mas as refeições em família foram muito melhores. É difícil olhar para a mesa vazia em que ele trabalhou nesse período.

Em outro ponto geográfico, penso muito em minha madrinha e minhas primas, as saudades já ultrapassaram o patamar de qualquer senso possível. Nós nos falamos em chamadas de vídeo, algo que não existia há menos de quinze anos, mas falta o abraço, a mão na mão, as risadas no mesmo ambiente.

O trabalho tem sido grande, com metas desafiadoras. Ando pensando muito no quanto mudei/mudamos, desde o início. Passei a vida escrevendo: poesias juvenis, cartas para a família, diários, historietas inventadas, projetos, contos e um livrinho minúsculo que não chegou às livrarias. Escrevi à mão e à máquina, depois no computador. Há muito tempo meu ofício é escrever, reescrever, copidescar, procurar a palavra certa para a mensagem, atualizar a escrita. No fim do ano passado o livro “Os sabiás da crônica” foi lançado, com seleção de alguns dos escritores que estão em meu canône de vida: Rubem Braga, Vinícius, Sabino, Paulo Mendes Campos, Stanislaw, Carlinhos Oliveira. Crônistas excepcionais em seu tempo. Meu irmão me deu, fui ler.

Textos com os quais passei tardes divertidas não são mais lidos com o sentimento anacrônico necessário por mim, porque as demandas da sociedade, na qual me incluo, não me permitem ter o distanciamento para ler termos ou situações que teriam tido “graça” em algum momento passado, por ignorância, desconhecimento ou incompetência de enxergar os privilégios de parte do povo. O que era encarado naturalmente como piada nos anos 1960, hoje me causa desconforto.

Sigamos reescrevendo com um olho no contexto da época e outro nas demandas de agora.

PS: Vou voltar a esse assunto da linguagem atual e inclusiva.

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O nosso dindinho

Atendi o telefone de um salto e a voz do outro lado disse, chorando: “ele foi”. Entendi de imediato o que tinha acontecido, mas não sabia, ainda, o impacto de sua ausência em nossas vidas.

O marido da minha madrinha, o pai de minhas primas, o cunhado de meus pais, o meu padrinho partiu cedo, muito, muito cedo. Aos 42 anos levantou voo e nos deixou aqui em pedaços e desagregados. Isso foi há 36 anos, parece que foi ontem, sua voz ainda ecoa, a risada é ouvida pelos cantos, o sambinha, o timbau, as histórias que vivemos, tudo está presente e está dentro de nós.

Mas ele não está aqui.

Meu padrinho foi o melhor do mundo. Ainda é, porque o que ele fez, ninguém mais fará. Ele me disse certa madrugada de carnaval, quando encontrou minha pulseira perdida num chão coberto de confetes e serpentinas: “a estrela do seu dindinho pisca, mas não apaga!”

Tá lá no universo, brilhando para a eternidade, onde iremos nos reencontrar.

 

 

 

Carta a Dorothy Parker

Tenho 27 anos e carrego The Portable DP comigo como se fosse um livro santo. Para todos os lugares que vou, você vai comigo e tento aprender como me expressar de maneira lírica e irônica ao mesmo tempo. Você foi alguém que eu gostaria de ter sido. Conhecido. Ou não. Sublinho seu-meu livro, marcando as frases que queria ter escrito. Dito. Ou não.

Mostro seu-meu livro para minha professora de literatura, que me responde que nunca a leu, não tem conhecimento de sua existência, não sabe quem foi você. Assim que ela se vira de costas, despejo todo o desprezo do meu olhar em sua nuca. Ela se volta  para mim com um sorriso amarelo e eu olho para seu-meu livro em minhas mãos.

Meu tempo com você é mágico, é iluminado, porém emprestado – como você escreve em suas histórias. Você me conduzirá e me emprestará um pouco da sua ousadia, fundamental para que eu viva minha vida daqui para frente, enquanto eu, atrevida, levarei seu-meu livro até o fim, até que suas páginas amarelas e secas comecem a rasgar. Ou não.

 

Porta-retratos

A aposta em 1957

As amigas duvidaram: “ninguém consegue namorar o Pevê”. Bastou a provocação para a moça linda, pequena, de cabelos curtos e olhos muito sapecas, tomar a decisão de seduzi-lo. “Eu consigo”. Gargalhada geral e ela séria, muito séria. Voltavam da praia para a casa do dr. Paulo, onde todos costumavam se reunir e fazer festas, rapazes sentados na varanda, moças no banheiro se arrumando. Ela pegou um frasco de xampu, desceu as escadas com degraus de mármore, passou por todos os homens e entregou nas mãos do Pevê, pedindo com charme: “Abre para mim?”– Ele abriu.

 

A fúria em 1974

Entraram no restaurante, cheíssimo àquela hora e foram até o bar para esperar mesa. Ele pediu um uísque e, bem mais alto, ficou na frente dela para que ela não fosse empurrada pelos muitos frequentadores que passavam de um lado para o outro. Uma loira cheia de curvas e piscadas com cílios postiços chegou perto dele, pegou o copo que estava em sua mão e já estava pronta para dar o bote no uísque e no marido alheio, quando a pequenina e feroz esposa, de um salto, arrancou o copo da mão da inoportuna e advertiu-a: “O uísque tem dono e o homem também.” – Ele sorriu.

 

A viagem em 1995

O restaurante ficava do outro lado do rio, mais de uma hora de carro. Era um lugar simples, em que os clientes pediam no balcão, arrumavam suas próprias mesas, e quando o prato ficava pronto, o cozinheiro gritava o nome do freguês para buscar o pedido na mesma bancada em que se pegava a bebida. Era uma orgia gastronômica. Ela, com um chope na mão, apreciava a vista. Após muitos pratos, perdeu o marido. Não sabia onde ele estava. Encontrou-o sentado à mesa de um casal jovem, provando a comida deles. “Querida! Você tem que provar esses caracóis! Maravilha!” – Ele aplaudiu.

 

O encontro em 2008

Ano-novo na casa da irmã, família faltando membros, muita emoção na chegada, risos e música e champanhe, muito champanhe. Com mexilhões defumados, ostras e camarões. Lá pelas tantas, ele começou a se sentir mal. Meio enjoado, mistura do calor, da bebida, dos sentimentos, chorou no meio do discurso e as ondas de enjoo aumentaram. A esposa viu, pegou o primeiro vasilhame de inox que encontrou na cozinha e correu para a sala a tempo de aparar o efeito da mistura daquela comoção. Tudo o que estava no estômago foi parar na cumbuca onde eram servidos os pratos mais caprichados da família. “Só não… não… contem pra Renatinha onde vomitei…” – Ele pediu.

Ele pediu a mão. Ela sorriu pra foto. Ele trabalhou dois turnos. Ela pariu dois filhos. Não foi um conto de fadas, mas eles foram felizes para sempre.

 

Dez para meia-noite

Domingo de verão, sol derretendo asfalto e ele na cama, não se sentia bem. Parecia um resfriado sem febre, podia ser garganta inflamada pelo entra e sai do ar-refrigerado, não se sentia bem. A família estava reunida em casa, uns conversavam, outros assistiam a qualquer coisa na TV, só ele que não se sentia bem. Na hora do almoço, fez grande esforço para se levantar e se sentar à cabeceira, gostava de todos reunidos, faria tudo por aquelas pessoas, estava pesaroso de não se sentir bem. Terminada a refeição, levantou-se para voltar para cama, não sem antes explicar que não se sentia bem. Todos perguntaram o que era e ele fez por menos, uma indisposição, uma dor no corpo, só não se sentia bem. Fim de tarde, família se despedindo, ele perguntou à filha se não dormiria lá e ela achou melhor voltar para casa pelo trabalho que daria na segunda de manhã. Ele se despediu dos filhos e netos, estava triste pois não se sentira bem todo o dia. Casa vazia, eram dez para meia-noite quando comentou com a mulher que sentia o corpo muito mole, uns arrepios e calafrios, só podia ser uma gripe daquelas, provavelmente não iria trabalhar no dia seguinte, iria descansar, ninguém o faria levantar daquela cama. E não levantou mesmo. Nunca mais.

 

O lado negro da força

Lembrei-me de um dia em que perdi a razão, enlouqueci. Reclamei na rua, atropelei um carro abusado no trânsito, mostrei o sinal fechado para o motorista do ônibus, com dedo em riste, arrastei minha cachorrinha por quilômetros de calçadão, caminhei de cara fechada, não dei conversa para quem fazia gracinhas para minha fofa, continuei firme em minha decisão de andar para espantar demônios. Voltamos. Desafiei a Lei e deixei-a solta na areia, sabendo que um banho seria imperativo mais tarde, buscava a repreensão policial, mas ninguém estava à vista. Ai, acho que enlouqueci. Faz tempo.