A casa de minha infância tem paredes brancas e janelas de peroba-do-campo que meu avô não deixou pintar. A casa de minha infância tem portas almofadadas, lareira com lenha que queima azul para todo mundo olhar como uma T antiga, tem a poltrona do Fasanello que foi consertar e nunca mais retornou, tem mesa comprida com feijoada, arroz soltinho, couve temperada e canjiquinha que minha irmã adora. Na casa de minha infância comemos bolo de chocolate e meu irmão devora seus bombons com recheio variado, embalados em papéis coloridos. A casa de minha lembrança abre seus braços imensos e acolhe a família vinda de longe e amigos de todas as tribos. Na casa de minha lembrança o sol sempre brilha, mesmo entre a bruma da alvorada, aquece corações, pernas, braços e cervejas. A casa de minha infância guarda a trilha da cachaça, desbravada corajosamente pelo meu avô, aos risos escondidos das crianças. Na casa de minha lembrança o jipe atola na lama e só os mais fortes conseguem raiar o dia gargalhando dessas dificuldades. Na casa de minha infância desfilam os personagens da história – veludão azul marinho, a prima enxugando a calça debaixo do chuveiro, o timbau que chora muito antes de Brown se mostrar ao mundo, a estrelinha que pisca, mas não apaga, a avó de maiô marrom, fazendo pose de Bardot descoberta, a mãe linda, loura e poderosa ao sol, o pai com um livro na sombra, impedindo aproximação aventureira, o irmão que joga bola com os homens, o cão fila de 96 quilos, chamado delicadamente de Lobo. O mau. A casa de minha lembrança dorme hoje o sono tranquilo de missão cumprida, mas os ecos familiares vagueiam por aqueles campos para sempre nossos.
Categoria: Crônica
Fora de área
Eu queria te falar do meu dia hoje, das últimas semanas, o que tenho feito, notícias boas, sentimentos de luz, que fazem meu rosto brilhar. Eu queria te contar o que se passa em meu coração, o que tem me feito sorrir, do trabalho, da caminhada na praia.
Como é bom ver o mar, olhar as ondas quebrando, forte, fraca, forte, fraca, crianças correndo e se esparramando na espuma, os times de garotos que chegam para jogar a pelada na areia no fim da tarde, turistas que passeiam ao longo do ano no calçadão, extasiados com tamanha beleza.
Eu queria te contar dos três navios cargueiros que passaram, ao largo, vagarosamente, apitando, enquanto eu estava lá sentada, sem vontade de ir embora. Será que seus tripulantes olhavam para nós, como eu olhava para eles? Para eles, uma visão de areia e concreto, com os prédios da orla, para mim, o mar infinito, milhas e milhas de oceano já descobertos, mas não navegados.
Hoje, vendo o mar, tive vontade de furar suas ondas, receber a energia, tive vontade de sentar na areia, como eu fazia, quando as areias ainda eram limpas, há muito tempo. Eu adoro areia. A sensação de pisar nela e afundar o pé, de ter mais trabalho para caminhar, vencer os metros que separam o calçadão da água. E depois do mergulho, esperar secar em pé, com rosto escondido do sol e sentar na areia, senti-la embaixo de mim. Mas estava frio.
Agora, é esperar o verão, chegar do trabalho com a luz do dia, trocar de roupa, caminhar até a praia, molhar os pés e os pulsos, jogar água na nuca e mergulhar no mar, me soltar, me embrulhar nas ondas e deixar o espírito criança surgir e tomar conta de mim. Voltarei com a alma lavada.
Eu queria te falar tudo isso, mas você estava fora de área.
A (in)compreensão do amor
Há muitas maneiras de amar. Mas há outras de não entender que se é amada.
Aquele era o seu dia preferido no ano, dia de mais um aniversário, noite de festa, e ela acordara sozinha porque seu recém-marido estava viajando e chegaria somente à noite. Virou para o lado vazio na cama e ficou aborrecida. Queria que ele estivesse ali, mas estar em casa hoje e longe amanhã fazia parte do trabalho dele.
Naquele dia, ela enfeitou a casa com flores, muitas flores, caprichou no jantar, foi para o salão para se sentir mais bonita. Tinha certeza de que ganharia uma joia de presente de seu marido. Algo para marcar bem aquele primeiro aniversário casada com ele.
Na hora certa, os convidados começaram a chegar e todos perguntavam pelo marido, que estava atrasado. Bebidas servidas, comidinhas enquanto o jantar não saía, todos esperando por ele. Como uma menina mimada, ela amarrou a cara. Afinal, que chateação ele atrasar justo naquele dia! Teve de servir o jantar sem ele, que entrou em casa sobremesa já servida, carregando um embrulho grande. O presente era um quadro bacana para a casa deles. Não gostou. Nem ligou. Não importava o autor, o valor, o esforço, o gosto. Não era o que esperava.
O resto da noite foi enfadonha, nada do que havia planejado. Muitos anos se passariam até que ela começasse a entender que as pessoas amam e demonstram o amor à maneira de cada um.
A que ainda não recebi
Parti apressadamente, sem adeus. Não houve tempo para uma despedida formal, com renovação de juras eternas de amor, nem arrumação de papéis. Na verdade, eu vinha adiando minha partida há algum tempo, mas dessa vez nem eu acreditei que iria mesmo embora, tanto que deixei mala e documentos para trás. Sei que fizemos planos, mas não tive como ficar para aproveitá-los com vocês. Escrevo só agora porque demorei para achar meu lugar, até porque sempre achei que meu lugar era ao lado de vocês. Mas vim na frente para arrumar a casa e deixar tudo pronto. Só peço o seguinte: não se apressem. Precisarei de tempo para ajeitar as coisas. Eu sei que não sou o melhor arrumador do mundo, mas prometo me esforçar aqui. Além disso, nossas conversas, enquanto vocês não vêm, serão valiosas para todos nós e quando nos reencontrarmos será tempo de festa. A tristeza e o choro terão ficado aí. Outra coisa que gostaria de pedir: aproveitem mais a companhia um do outro, os amigos, o sol, a natureza. Sorriam mais. Sinto falta de ouvir suas risadas. E consigo ouvi-las mesmo longe. É, eu sei que vocês vão falar que estão com saudades, eu também sinto. E muita. Cuidem da saúde e sejam felizes. Estou bem e nos veremos em alguns anos. Amo muito vocês. Beijos mil do Papai.
Eu e o outro eu
Ela abriu os olhos grandes e escuros e sorriu com a boca sem dentes para o homem grande à sua frente. Ele abriu os braços e ela se jogou em total confiança, aninhou-se e nunca mais sairia de sua segurança. Uma bola jogada na direção dos dois desviou a atenção da menina, que levantou a cabeça. – Deita, filhinha, deita – pediu o pai, com carinho, enquanto aconchegava a filha novamente na posição confortável para transportá-la pela areia quente, cheiro de maresia, em direção ao calçadão.
Ela não desgrudava os olhos da TV, assistindo a um filme com monstros violentos e destruidores, e não deu bola para ele que entrou na casa, com cheiro de comida recém-feita. Desligou a TV, pegou a filha, que reclamava, no colo. – Muito violento, filhinha, muito – respondeu ele, quando a menina se queixou de não assistir o final.
Ele saiu do carro e a ajudou a descer, com um vestido longo e comprido, deu um beijo em sua bochecha e pegou sua mão na dele, enquanto caminhavam pela nave da igreja cheia, com cheiro de flores, em direção ao altar. – Seja feliz, filhinha, bem feliz – encorajou o pai, enquanto se dirigia ao lugar reservado a ele na cerimônia.
Ela chegou em casa e o encontrou deitado na cama, coração parado, olho fechado, tempo mudo. Pegou as mãos do pai e as segurou por muito tempo entre as suas. Beijou sua cabeça, com cheiro dos cabelos grisalhos, deitou em seu ombro, e disse só para ele: – Dorme, paizinho, dorme. Em paz e até breve.
Papai
Beijei sua testa ainda quente, seu cabelo carregava o perfume do dia anterior, segurei sua mão já sem a aliança, olhei para você deitado e não acreditei. Como não acredito até agora. Mamãe chorava em ondas, meu irmão telefonava com os olhos vermelhos. – Ele morreu… Como assim? Não foi isso o combinado… Foi diferente, fizemos planos, estávamos no início da execução, e agora? Continuaremos sem você, sem sua graça, sua risada, sua voz, sua presença. Que dor indescritível. Só quem já passou por ela, sabe.
Deitei a cabeça em seu ombro enquanto vários amigos chegavam para acreditar, para ajudar, para abrir e fechar portas. O médico chegou, olhou de longe para você, atestou qualquer coisa, já não fazia diferença. A família chegou e aqui está. Levaram você para uma sala, nos levaram para a mesma sala e nosso espírito ardeu com o seu corpo. Você voltou para Niterói, como pediu, nós retornamos à casa vazia, sem você. Desde então, comemos suas empadinhas, bebemos seu vinho, olhamos seus retratos, ouvimos sua voz gravada em vídeos caseiros. Desde então, rezamos para que você esteja em paz, tentamos ficar em paz, tentamos falar palavras doces uns para os outros, quando o que desejamos mesmo é mandar tudo à merda. Eu sei que você não gosta de palavras chulas, mas o momento pede. O táxi não quer parar? Vai à merda. O jornal encrencou? Merda. O copo partiu? Merda. Milhares de providências a tomar? Merda. O vizinho reclamou? Merda. Falamos alto? Esse pede a palavra que você não gostaria de ler, então não escrevo. Mas está subentendida. Toda noite, a partir da hora em que você chegaria em casa, vem alguém e nos leva para longe ou nos faz companhia, um revezamento provavelmente articulado por você. Mamãe, abalada, reclamou: – Seu pai morreu e parece que estamos em festa! A tristeza que nos assola é tamanha que só o atordoamento alcoólico nos permite dormir algumas horas a cada dia. E quando abro os olhos no dia seguinte, não acredito, fecho de novo, gemo baixinho e vem aquela onda de embrulho no estômago. O mais estranho de tudo é olhar as pessoas na rua, alheias ao nosso sentimento de perda e ver os sorrisos, ouvir pedaços de conversas, perceber que a vida continua para elas, os blocos batucando, o Flamengo campeão, tudo isso, que não é pouco, é quase uma ofensa pessoal à nossa dor. Hoje vamos vencer mais um dia, vamos nos despedir, novamente, de você. Acho que a cada dia, iremos nos despedir um pouquinho de você, já que você não estará sentado na cabeceira, não dará sugestões, não estará presente para ver os netos crescerem. Dizem que nós nos acostumaremos com sua ausência, mas a saudade só crescerá. Não é um prognóstico positivo, uma vez que a saudade já é imensa. Vamos. Um dia de cada vez.