1000 dias sem ele

Falaram para rezarmos missa para iluminar seu caminho, disseram para tocarmos a vida e aproveitarmos a mudança, mostraram os dias ensolarados e quentes, pediram para acendermos velas, pularmos ondas, jogarmos palmas no mar, batermos tambores, homenagearmos santos e orixás. Afirmaram que a dor diminui, enquanto a saudade aumenta, indicaram leituras amenas e os filmes mais recentes. Mostraram músicas novas e cantaram para nos fazer rir. Fizeram festas e deram-nos presentes.

Só se esqueceram de nos ensinar a viver sem você.

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A história de Nina

Foto1066O que aconteceu antes, não sei. Não sei como tiveram a coragem, não sei por que atiraram Nina-linda, pequenina-Nina pela janela de um carro em movimento, na pista do meio da Lagoa, na avenida Epitácio Pessoa, no quarteirão entre Garcia e Maria Quitéria, na manhã de 22 de novembro de 2012. Nina voou, um carro bateu nela,  e Paulinho saiu correndo de sua calçada, driblando os carros para salvá-la no canteiro do meio da Lagoa. O filhote de menos de quatro meses estava vivo, assustado, quebrado e encolhido embaixo de um carro. Paulinho se esforçou e conseguiu pegar Nina, levou-a para uma clínica bacana no bairro, a veterinária diagnosticou o que deveria estar errado e indicou o que ele deveria fazer. Paulinho é porteiro em um dos prédios da Lagoa e tudo o que desejava era ver a gatinha em bom estado. Deu comida e aconchego até o dia seguinte, quando Thelma soube da história e me chamou.

Eu sei cuidar de cachorros, não de gatos, entrei em contato com Carol e Ione que me deram dicas preciosas para os primeiros momentos que já corriam 24 horas após o atropelamento. Foi um dia de peregrinação por clínicas médicas e radiológicas para descobrir que Nina tinha duas fraturas, uma na bacia e outra, grave, na cabeça do fêmur. Era caso de cirurgia, não havia outra solução. Descobri, naquele momento, que as três cirurgias mais caras para animais domésticos – cães e gatos – são ortopédica, oftálmica e neurológica. Coisa de muitos mil reais.

Dr. Marcelo, o veterinário de Shee, aconselhou que levássemos Nina à Unidade de medicina veterinária Jorge Vaitsman, perto da Mangueira, mantido pela prefeitura e com preços muito acessíveis para a população. Naquela primeira sexta-feira, após a peregrinação por clínicas e com a indicação cirúrgica, Ione acolheu Nina, que passou a conviver com Batata e Spanka, os donos da casa.

Desde a primeira consulta de Nina com o dr. Luiz, cirurgião ortopédico na UJV, no dia 28 de novembro de 2012, voltamos lá para a cirurgia dia 5 de dezembro, primeira revisão dia 12, retirada de pontos dia 19, segunda revisão dia 2 de janeiro de 2013 e hoje, dia 24, quando Nina finalmente tirou os ferros, que Ione encomendou em São Paulo, e ajudaram a consolidar seu osso. Fizemos campanha na internet e na vizinhança, pedimos ajuda financeira e arrecadamos 930 reais, que pagou o mais pesado.

Além da financeira, recebemos ajuda em forma de indignação, incentivo e interesse. Durante dois meses acompanhamos a evolução do estado de Nina que saiu do susto-quase-morte para uma vida alegre e cheia de peraltices. Mesmo com os ferros, Nina já corria atrás do meu colar comprido quando o arrastava pelo chão, curiosa para descobrir o que era aquilo se mexia à sua frente. Ela tem um excelente comportamento com os gatos de Ione, cheia de chamego com Spanka e respeito territorial com Batata.

Agora que linda-Nina está inteira, colada e sem sequelas, alegre e saltitante, passaremos ao segundo degrau de sua vida que é encontrar alguém que mereça conviver com uma gatinha tão especial como ela. Alguém se habilita?

Coração de Pai

Sabe como é… Dezembro chega e já vai embora, no meio de tanta coisa para terminar, para fechar o ano, para começar o ano seguinte zerado, cheio de promessas de dias melhores e sorrisos intensos. O pensamento, que já está desfocado, viaja para trás e para frente, lembrando e imaginando, todos os verbos no gerúndio de uma boa fala brasileira.

No entanto, este dezembro chegou inclemente, com a notícia do coração que vai ter que colocar um aparelhinho, como um Ipod nano, cor-de-rosa, – na verdade é cinza feioso, prefiro imaginar que seja rosa – para fazer com que ele volte a bater em um rítmo normal e mais vigoroso.

Aquele coraçãozão imenso, que carrega o mundo lá dentro, que não guarda mágoa de ninguém, que sempre estendeu as mãos – o coraçãozão de meu pai tem mão, tem perna, tem olho, tem vários outros membros que o ajudam a ser tão generoso – vai ter que levar uns choquezinhos cada vez que sair do rítmo, como se estivesse numa escola de samba do grupo especial.

Os médicos falaram que é coisa à toa, um cortezinho aqui – é tudo no diminutivo – dois fiozinhos ali, um no átrio, outro no ventrículo, um por cima, outro por baixo, um na saída e outro na entrada, para o tum-tum voltar pro tom.

Depois de muitos exames e muito palpite, muita ordem do que não pode fazer – nem comer, nem beber – resolveram que a cirurgiazinha vai ser agorinha, em menos de cinco diazinhos. Mas esses diazinhos são muito longos e são justamente aqueles que têm trinta horas, mas que não estão disponíveis quando deles precisamos.

Já houve dezembro em que desejei que meus dias tivessem mais horas para dar conta de tudo, mas neste dezembro, em que tenho tanto para fazer e nada faço, eu gostaria de dias curtinhos para passar logo e levar o coraçãozão do pai para o hospital e trazer de volta o pai inteiro, com um Ipod extra que não vai tocar música, mas vai apitar nos aeroportos e em todas as lojas com barreiras eletrônicas antifurtos.

Os médicos – de novo eles – disseram que o problema é só esse, como se fosse pouco ter um problema em que o coração fica uns segundinhos sem bater, e que o músculo cardíaco desse paizão está em excelente estado. Não poderia ser diferente: ele foi alimentado durante os últimos 73 anos com o mais puro amor que todos poderíamos dar, além dos afetos sinceros de toda a família, dos amigos, dos conhecidos, do homem do sinal, do vendedor de frutas, de todos que têm o privilégio de conhecer o dono desse coraçãozão. De pastel também. E empadinha. Porque, como já falei antes, o coraçãozão do meu pai tem muitos membros e tem boca e sistema digestivo também. Na verdade, tem tudo: quando olho para ele, para o meu pai, o que vejo é um grande coração andando por aí. Sorrindo por aí. Fazendo hidroterapia para fortalecer todos os músculos. Contando histórias e fazendo a vida ser melhor. Dessa forma é capaz desse Ipod nano cor de coração além de colocar as batidas surdas no rítmo, ainda trazer uns sambinhas de Cartola, de Chico, de Pagodinho… Em menos de cinco dias, vou colocar a cabeça no peito de meu pai e ouvirei música lá do fundo do coração.