Meu Herói

Como eu poderia sair dessa? Precisava arrumar um jeito de escrever o best-seller que deveria ter escrito há mais de um mês e fingia esquecer. Uma viagem de férias no meio do período foi providencial e me ajudou a adiar. Mas, agora, não existia mais como fugir dele.

Normalmente, quando ia escrever alguma coisa, primeiro eu pensava na ideia básica que me martelava a cabeça durante algum tempo. Quando ela já havia amadurecido o suficiente (o que muitas vezes significava dias e noites de martelação), eu começava a escrevê-la.

O problema era justamente esse; já havia passado muito tempo e nada surgia no front. Nem mesmo a ideia básica. Eu viajei com aquela barulheira infernal em minha cabeça e nada aconteceu. Abri a gaveta mental de ideias, mas ela se recusou a me dar qualquer ajuda para o tema. Comecei a escrever assim mesmo. Pilhas de papel foram para o lixo.

Resolvi, então, fazer uma última tentativa. Relembrei os ingredientes para o texto: belas paisagens, (que se transformariam em locações), intrigas, pessoas bonitas, poderia até colocar um suspense na jogada. Eu tinha que escrever a estória de olho nos milhões de dólares que iria receber com a venda dos direitos de filmagem para Coppola. Tudo bem cinematográfico. Mas as ideias não fluíam. Pensava no herói, imaginava quem seria, como se vestiria e o que sentiria. Poderia ser um inescrupuloso investidor da Bolsa, de nome Wallace James, que conseguia tudo, tinha um harém de fãs e só andava em sua limusine tripla, infinitamente branca. Poderia ser uma super executiva, independente, desejável, que controlava um conglomerado de empresas. Ela se chamaria Elizabeth (homenagem à minha amiga invisível da infância) e teria o mundo a seus pés.

Mas não adiantava. Quanto mais eu pensava no herói do cinema, mais me surgia a imagem do herói-nosso-de-cada-dia, do anti-herói, da gente comum. Quanto mais eu imaginava as belas locações no sul da França, mais eu via o Seu José, pés no chão, andando seus não sei quantos quilômetros diários para chegar ao canavial. Quanto mais eu via o jatinho particular, levando Wallace James para aonde bem desejasse, mais eu enxergava os habitantes de uma vila perdida no meio do nada, com suas roupas limpas de domingo, andando em direção à igreja, onde cantariam seus hinos e louvariam o amor. E por mais que desejasse Coppola, só encontrava gente do povo, cineastas que são, rascunhando seus próprios roteiros.

Achei melhor, então, escrever sobre o Seu Gualberto, aquele que tinha um sonho… Não. Isso já é outra estória. Fica para o exercício de época.

Publicidade

Ilustre Desconhecido

Dario era homem precavido. Só saía de casa depois de se certificar sobre o tempo, levava sempre um dinheiro a mais para uma emergência ou um assalto. Junto da identidade, a carteira com o tipo sangüíneo e o telefone do único parente vivo: um sobrinho em Volta Redonda. Ainda bem que o tempo estava firme, seria menos penosa a fila da aposentadoria sem chuva. Saiu de casa antes das seis, para ser um dos primeiros. Pegou o ônibus e, ao saltar, quase levou um tombo, não estava enxergando direito. Dois passos, tropeçou num buraco e tentou se apoiar em um muro que não existia. Caiu sentado na calçada. Algumas pessoas passaram por ele, sem dar atenção. Outra reclamou que o velho estava bem no meio da calçada, atrapalhando o caminho. Dois carregadores chegaram perto e perguntaram o que ele sentia. Dario tentou responder, abriu a boca, mas cuspiu sangue. Os carregadores recuaram enojados. Uma senhora que passava disse para eles tomarem cuidado, os bêbados costumam ser violentos.

Dario se estendeu na calçada, respirando com dificuldade. Saía um filete de sangue pelo nariz. Os carregadores se agacharam e abriram seu paletó, afrouxando a gravata. Dario apontava para o bolso com a carteira. Eles encontraram o dinheiro e saíram dizendo que iam comprar remédio e água. Um menino batia uma bola e quase acertou Dario, um senhor de óculos desviou e disse que o velho estava morrendo. Foi um corre-corre. Pessoas querendo ver, outras já tinham visto. Uma gorda, com ares de enfermeira, se aproximou, abriu os braços e, com uma força descomunal, arrancou o paletó de Dario, desapertando-o. Duas prostitutas lutavam pelo privilégio de segurar o paletó, que acabaram rasgando na altura do bolso. A carteira caiu no bueiro. Os olhos de Dario ficaram vidrados e seu corpo sacudiu todo em espasmos irregulares e contínuos. A multidão recuou horrorizada. As prostitutas saíram correndo, quando ouviram a sirene da polícia, cada uma com um pedaço do paletó.

O guardas se aproximaram e fizeram um cordão isolando o cadáver que, após o último espasmo, havia ficado torto, cabeça para frente e corpo para trás. Alguém trouxe um jornal para cobrí-lo, mas ventava e o jornal foi levado pelos ares. Colocaram quatro velas em torno do homem, mas o vento não permitiu acendê-las.

A multidão começava a perder o interesse e se dispersar, o corpo contorcido não chamava mais a atenção. Vieram dois outros guardas, para substituírem os primeiros, famintos àquela hora. O rabecão estava com muito trabalho na zona sul e só passaria tarde da noite. Um guarda comentou com o outro que era um absurdo um velho daquela idade sair sem documentos. Iria mofar muito tempo no IML até alguém se dar conta da sua ausência, ou, então, iria para a escola de medicina.

MPV – julho 1989
Inspirado e baseado no conto de Dalton Trevisan “Uma vela para Dario” – exercício para curso de Ficção para a OLAC – Oficina de Literatura Afrânio Coutinho