Eu confiei em você. Acreditei mesmo quando todas as circunstâncias me diziam o contrário. Naquela noite chuvosa, você repetiu frases de novela em meus ouvidos e eu não assisto novela. Acreditei. Achei que seria para sempre o que durou pouco. Você cantou, contou sua história, me desarmou dos meus medos, me disse que sua procura terminara. Acreditei. No entanto, você não gostava de sol, não gostava de céu, não gostava de mim. Eu confiei em você quando me impediu de ir embora, desfez minha sacola, quando me sentou em seu colo e chorou em meu ombro. Repetiu que sua procura terminara, sua vida seria outra e eu estaria nela para sempre. No entanto, você não gostava de sol, não gostava de céu, não gostava de mim. Eu confiei em você quando me escreveu cartas de amor, eternizou nossos momentos em fotos agora sem cor, quando sorriu e riu para mim, me enlaçando em seus braços. No entanto, você não gostava de sol, não gostava de céu, não gostava de mim. Finalmente acreditei.
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Nasci Velho
Nasci velho, embrutecido, antiquado, preconceituoso, reacionário mesmo. Grande juiz dos casos de valor ocorridos em minha vila. Sorriso disfarçado-disfarçava a inconveniência das pessoas ao meu redor, sempre erradas. Se sorriam, se dançavam, se viviam, erravam. Minhas rugas eram internas, de preocupação constante com o olhar do inimigo, com o exame dos outros sobre mim mesmo. Covarde, ao ponto de não querer ver, medroso de olhar o outro lado dos conceitos que nasceram comigo, o velho e embrutecido.
Em um processo lento e tortuoso para mim, instantâneo para quem me conhecia, fui rejuvenescendo e aprendendo a ver com os olhos dos outros os casos alheios. Deu-se o inverso em minha vida. Aqueles a quem julgara por tantos anos, passaram a me julgar, todos que sorriam franziram os cenhos e com os punhos cerrados ao alto, brandiram nomes e correram a me encarcerar.
Já era tarde. A sucessão de mudanças já havia atingido o ponto do não retorno. Covardes e preconceituosos, deixei-os pela estrada, busquei novos campos, conheci outros lados, invoquei novos conceitos, e dentre eles, o mais sagrado: a abertura total dos olhos, a busca do desconhecido, a curiosidade a me guiar, fazendo-me um novo homem, um homem novo, jovem no espírito, leve, sem rugas.
O caminho não é fácil e as tentações de peso são inúmeras. Mas nunca novamente serei o homem velho que era quando nasci.
Nem assim
Larguei o chiclete, o álcool, o fumo, o jogo. Joguei fora o baralho. Deixei as ruas, as drogas, as más companhias, as boas companhias, todas as companhias. Joguei fora a caderneta de telefones. Tomei banho todos os dias, usei perfume, lavei os dentes, passei minha roupa, endireitei a gola, penteei o cabelo. Joguei fora o espelho. Não xinguei, esqueci o palavrão, tentei falar bonito, comprei flores. Joguei fora minha arma. Arrumei casa, escovei chão, limpei privada e pia, arranhei a mão na ponta quebrada do azulejo. Joguei fora o lixo. Comprei jornal, arrumei emprego, cumpri horário. Joguei fora o ócio. Usei telefone, me inscrevi no vestibular, estudei com afinco, me formei na faculdade. Joguei fora a ignorância. Recebi convite, mudei de emprego, fiquei rico. Joguei fora a simplicidade. Fiz amigos, casei, tive filhos. Joguei fora a irresponsabilidade. Fiquei importante, fiquei esnobe, fiquei arrogante. Joguei fora minha vida. Joguei fora, joguei fora, joguei, comprei um baralho, masquei chiclete, voltei a beber, a fumar, traí todo mundo, meus amigos, minha família, minha empresa. Nem assim.