Fora de área

Eu queria te falar do meu dia hoje, das últimas semanas, o que tenho feito, notícias boas, sentimentos de luz, que fazem meu rosto brilhar. Eu queria te contar o que se passa em meu coração, o que tem me feito sorrir,  do trabalho, da caminhada na praia.

Como é bom ver o mar, olhar as ondas quebrando, forte, fraca, forte, fraca, crianças correndo e se esparramando na espuma, os times de garotos que chegam para jogar a pelada na areia no fim da tarde, turistas que passeiam ao longo do ano no calçadão, extasiados com tamanha beleza.

Eu queria te contar dos três navios cargueiros que passaram, ao largo, vagarosamente, apitando, enquanto eu estava lá sentada, sem vontade de ir embora. Será que seus tripulantes olhavam para nós, como eu olhava para eles? Para eles, uma visão de areia e concreto, com os prédios da orla, para mim, o mar infinito, milhas e milhas de oceano já descobertos, mas não navegados.

Hoje, vendo o mar, tive vontade de furar suas ondas, receber a energia, tive vontade de sentar na areia, como eu fazia, quando as areias ainda eram limpas, há muito tempo. Eu adoro areia. A sensação de pisar nela e afundar o pé, de ter mais trabalho para caminhar, vencer os metros que separam o calçadão da água. E depois do mergulho, esperar secar em pé, com rosto escondido do sol e sentar na areia, senti-la embaixo de mim. Mas estava frio.

Agora, é esperar o verão, chegar do trabalho com a luz do dia, trocar de roupa, caminhar até a praia, molhar os pés e os pulsos, jogar água na nuca e mergulhar no mar, me soltar, me embrulhar nas ondas e deixar o espírito criança surgir e tomar conta de mim. Voltarei com a alma lavada.

 

Eu queria te falar tudo isso, mas você estava fora de área.

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Papai

Beijei sua testa ainda quente, seu cabelo carregava o perfume do dia anterior, segurei sua mão já sem a aliança, olhei para você deitado e não acreditei. Como não acredito até agora. Mamãe chorava em ondas, meu irmão telefonava com os olhos vermelhos. – Ele morreu… Como assim? Não foi isso o combinado… Foi diferente, fizemos planos, estávamos no início da execução, e agora? Continuaremos sem você, sem sua graça, sua risada, sua voz, sua presença. Que dor indescritível. Só quem já passou por ela, sabe.

Deitei a cabeça em seu ombro enquanto vários amigos chegavam para acreditar, para ajudar, para abrir e fechar portas. O médico chegou, olhou de longe para você, atestou qualquer coisa, já não fazia diferença. A família chegou e aqui está. Levaram você para uma sala, nos levaram para a mesma sala e nosso espírito ardeu com o seu corpo. Você voltou para Niterói, como pediu, nós retornamos à casa vazia, sem você. Desde então, comemos suas empadinhas, bebemos seu vinho, olhamos seus retratos, ouvimos sua voz gravada em vídeos caseiros. Desde então, rezamos para que você esteja em paz, tentamos ficar em paz, tentamos falar palavras doces uns para os outros, quando o que desejamos mesmo é mandar tudo à merda. Eu sei que você não gosta de palavras chulas, mas o momento pede. O táxi não quer parar? Vai à merda. O jornal encrencou? Merda. O copo partiu? Merda. Milhares de providências a tomar? Merda. O vizinho reclamou? Merda. Falamos alto? Esse pede a palavra que você não gostaria de ler, então não escrevo. Mas está subentendida. Toda noite, a partir da hora em que você chegaria em casa, vem alguém e nos leva para longe ou nos faz companhia, um revezamento provavelmente articulado por você. Mamãe, abalada, reclamou: – Seu pai morreu e parece que estamos em festa! A tristeza que nos assola é tamanha que só o atordoamento alcoólico nos permite dormir algumas horas a cada dia. E quando abro os olhos no dia seguinte, não acredito, fecho de novo, gemo baixinho e vem aquela onda de embrulho no estômago. O mais estranho de tudo é olhar as pessoas na rua, alheias ao nosso sentimento de perda e ver os sorrisos, ouvir pedaços de conversas, perceber que a vida continua para elas, os blocos batucando, o Flamengo campeão, tudo isso, que não é pouco, é quase uma ofensa pessoal à nossa dor. Hoje vamos vencer mais um dia, vamos nos despedir, novamente, de você. Acho que a cada dia, iremos nos despedir um pouquinho de você, já que você não estará sentado na cabeceira, não dará sugestões, não estará presente para ver os netos crescerem. Dizem que nós nos acostumaremos com sua ausência, mas a saudade só crescerá. Não é um prognóstico positivo, uma vez que a saudade já é imensa. Vamos. Um dia de cada vez.

Encontro marcado

Podem dizer o que quiserem. A economia está ruim, os números maquiados, os protestos violentos, as manifestações perigosas, a roubalheira generalizada, o desânimo assustador. Podem repetir que em vez dos gastos com o futebol, o país deveria priorizar a educação, a saúde, o transporte e a educação. Podem exigir estradas seguras e menos impostos. Podem gritar que nada faz sentido no país do futebol. Podem dizer que não vai ter Copa. Para mim, que acho que peculato e seus primos deveriam ser crime hediondo, sem direito a fiança, e que acredito que os códigos penal e de processo penal estão com a validade vencida, vai ter um campeonato de futebol, não a Copa. A Copa que não vai acontecer é a mesma para a qual tínhamos compromisso acertado e assinado, que seria cheia de expectativas e risos, bandeira e hino, como tantas outras. A Copa na nossa língua, com o jeito alegre e colorido de nossa gente. A Copa pela qual você esperava desde 1950, quando, moleque, chorou de dor. A Copa que você tinha combinado conosco que iríamos assistir juntos, mas não pôde esperar. A bola vai rolar nos quatro cantos do país e você não vai ver. Nós tínhamos um encontro marcado, mas você fechou os olhos e, cansado, dormiu.

1000 dias sem ele

Falaram para rezarmos missa para iluminar seu caminho, disseram para tocarmos a vida e aproveitarmos a mudança, mostraram os dias ensolarados e quentes, pediram para acendermos velas, pularmos ondas, jogarmos palmas no mar, batermos tambores, homenagearmos santos e orixás. Afirmaram que a dor diminui, enquanto a saudade aumenta, indicaram leituras amenas e os filmes mais recentes. Mostraram músicas novas e cantaram para nos fazer rir. Fizeram festas e deram-nos presentes.

Só se esqueceram de nos ensinar a viver sem você.

Naquela mesa

Naquela mesa ele sentava sempre
E me dizia sempre o que é viver melhor
Naquela mesa ele contava histórias
Que hoje na memória eu guardo e sei de cor
Naquela mesa ele juntava gente
E contava contente o que fez de manhã
E nos seus olhos era tanto brilho
Que mais que seu filho
Eu fiquei seu fã
Eu não sabia que doía tanto
Uma mesa num canto, uma casa e um jardim
Se eu soubesse o quanto dói a vida
Essa dor tão doída, não doía assim
Agora resta uma mesa na sala
E hoje ninguém mais fala do seu bandolim
Naquela mesa tá faltando ele
E a saudade dele tá doendo em mim
Naquela mesa tá faltando ele
E a saudade dele tá doendo em mim

O dia depois de amanhã

Será a mesma coisa no dia depois de amanhã e novamente mês que vem, quando não poderemos estar em sua presença. Entra mês e passa dia e as lembranças de outros meses e outros dias puxam um trem imaginário de momentos que, de tão bons, divertidos e felizes, deixam uma sensação de infinito bem-estar, quando passam pela minha estação. Um objeto, uma fotografia, um cheiro antigo, um gosto perdido no tempo. É sempre hora de brindarmos a você que nos ensinou tanto.
Semana passada, assistindo à final do tênis nas olimpíadas conversei com você. Falávamos sobre elegância, comparamos a fleuma britânica com as garrafadas brasileiras em copa distante no tempo. Os dois extremos são características das duas culturas, mas bem que poderia haver um meio termo. Ficamos desapontados porque nosso “queridinho” não levou o ouro, mas é tão bonito ver inglês mostrando certa emoção que até valeu. Comentei sobre a sua elegância e você ficou meio envergonhado, mas com aquele sorriso de quem concordava e rimos muito quando lembramos aquela vez na praia do Meco, em que perdemos você no restaurante para encontrá-lo elegantemente sentado à mesa de seus novos amigos provando caracóis, deliciosos caracóis. Somente algum tempo depois é que fui aprender que mesmo filando caracóis você era elegante. E simpático. Ninguém resistia ao seu jeito simples de ensinar as melhores coisas da vida. No “bunda de fora” comendo casquinha de siri com chope na pressão ou no Botín, comendo coração de alcachofra com pata negra. Na forma em que você pedia o carro ao manobrista ou ensinava a calcular a resistência dos materiais. No jeito em que pedia para ler em voz alta para nós Eça, Saramago, Jorge Amado, Pedro Nava ou o Garfield. Na forma de torcer por um ou por todos os brasileiros. Elegante sempre, mesmo gordão. Nessa hora, você olhava para mim muito admirado e perguntava: “quem é gordão?” e eu caía na gargalhada.
Feliz dia porque todos são seus.