Músculo

Se me perguntarem se vivi muito, poderei pensar que não. Mas não foi bem assim. Vivi intensamente cada paixão que me foi dada de presente. Acho que as paixões são presentes que recebemos, também acredito que são escolhas que fazemos. Escolhi viver aquelas e não outras. Sempre houve mais de um caminho e todos escolhi com o coração. Usei tanto meu coração que hoje ele é fraco e bate com a ajuda desse motor que regula seus suspiros. Por muito tempo quem regulou meus suspiros fui eu, agora é essa máquina ao lado da cama que infla e desinfla meu peito.

Comecei a gastar meu coração bem nova, Zezinho fez a primeira cicatriz no músculo em meu peito. Trocou-me por uma caixa nova de lápis de cor que a outra menina deu de presente. Depois dele, a lembrança que tenho é de uma fila de meninos e homens que entraram em meu coração e saíram dele expulsos por mim ou fugidos de mim, não importa, todos deixaram feridas. E tantas feridas depois, meu coração um dia não quis mais, pediu-me para deixá-lo quieto e como eu teimasse em não atendê-lo, estendeu-se no soalho do meu peito e recusou-se a obedecer ao impulso involuntário de bater sozinho. Agora seu uso é estritamente para me manter viva, mas sem vida porque funciona, mal, apenas como músculo, desativou sozinho sua tecla do amor.

Durmo e acordo nesse quarto amarelinho, sou alimentada por um tubinho, cuidada por enfermeiras delicadinhas para que meu coração que já foi grandão, possa seguir batendo em um ritmo ordenado pelos médicos. Já tentei alcançar o botão off, mas não consigo me mexer sozinha, tudo o que tenho são as cicatrizes incapacitantes e paralisantes. De que me vale o funcionamento desse músculo se ele não me permite usá-lo para amar? Posso dizer que a briga foi sangrenta, mas ele não cedeu. Um dia, como eu insistisse em desafiá-lo, jogou-me no chão e deixou-me desacordada por horas. Salvou-me o vizinho, objeto último de meu desafio, que me trouxe para esse quarto em que vivo agora. Nunca mais voltou, o vizinho. O bom samaritano quer um coração inteiro e não um despedaçado como o meu, sem a tecla de amor.

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A imagem encantada

Primeiros momentos à espera do sonho que me levará ao destino de múltiplas faces. Carrego no bolso a imagem encantada que, presenteada com afeto, muda a vibração do ser.

Em conversa com minha irmã, verificamos a diferença de vibração energética no último ano. Antes, o espírito de carregação dizia “tu deves” e agora o espírito de liberdade diz “tu queres”.

Não somente questões inspiradoras do desejo se impõem. Mostram-se, novamente, as garras do “eu quero” que sempre me fizeram andar para frente, viver minha vida de forma encantada, conseguir, muitas vezes, após árdua batalha, meus objetivos, ir e vir, trabalhar com prazer, fazer o que mais gosto, sonhar e concretizar sonhos que muitos sequer tiveram e outros jamais ousaram.

Até o próximo carnaval

Carnaval sempre foi assunto sério em família. Brincamos o carnaval desde pequenos, em suas mais diferentes formas, blocos de rua, bailinhos de salão, escola de samba, festa em casa. Papai inventava blocos que nunca saíam de sua imaginação e de sua gaiatice: BBMB foi o Bloco dos bolas murchas das Braunes, um bloco implicante com filhos e sobrinhas adolescentes que sambavam nos bailinhos até o dia amanhecer, seguiam para a canja da sustância, no restaurante do clube, e passavam o dia dormindo, restabelecendo forças para a noite seguinte. Empurra que pega veio depois, ninguém empurrou, o bloco não pegou e ninguém saiu das brincadeiras em casa. Meu padrinho não viajava para férias em família sem o timbau, muitos anos antes do instrumento correr mundo no ritmo da timbalada. Batucava e fazia contraponto com a mão da aliança, era um som único para nós. Eu cresci com o rock na cabeceira, mas carnaval era outra coisa, outro momento, era a nossa folia. Alguns anos depois, papai foi o chef que preparava os melhores sanduíches para depois dos ensaios do Suvaco do Cristo, aos domingos, no Horto. Mangueirense, torcia pela escola como para o próprio time de futebol, sempre com muita parcialidade, chegou a ligar para mim, de férias no México, só para dizer que Mangueira havia sido a campeã daquele ano.

Vivi outros carnavais divertidos em ensaio da Portela, no ensaio do Salgueiro com Bono na pista e meus amigos tentando o suicídio coletivo por insolação ou correndo atrás da calota perdida em direção a Tiradentes em carnaval já relatado aqui. Sassaricando na Glória e com Monobloco na Cinelândia. Vivi muitos carnavais, sinto saudades deles e anseio pelo próximo em que estarei presente.

Faz dois anos que o carnaval passa pela esquina e não me carrega. Vejo a alegria do povo nas ruas, me divirto com algumas fantasias, torço para a chuva não estragar a festa, escolho um livro e fico quieta no meu canto. Quem sabe o próximo me arrebatará.

A história de Nina

Foto1066O que aconteceu antes, não sei. Não sei como tiveram a coragem, não sei por que atiraram Nina-linda, pequenina-Nina pela janela de um carro em movimento, na pista do meio da Lagoa, na avenida Epitácio Pessoa, no quarteirão entre Garcia e Maria Quitéria, na manhã de 22 de novembro de 2012. Nina voou, um carro bateu nela,  e Paulinho saiu correndo de sua calçada, driblando os carros para salvá-la no canteiro do meio da Lagoa. O filhote de menos de quatro meses estava vivo, assustado, quebrado e encolhido embaixo de um carro. Paulinho se esforçou e conseguiu pegar Nina, levou-a para uma clínica bacana no bairro, a veterinária diagnosticou o que deveria estar errado e indicou o que ele deveria fazer. Paulinho é porteiro em um dos prédios da Lagoa e tudo o que desejava era ver a gatinha em bom estado. Deu comida e aconchego até o dia seguinte, quando Thelma soube da história e me chamou.

Eu sei cuidar de cachorros, não de gatos, entrei em contato com Carol e Ione que me deram dicas preciosas para os primeiros momentos que já corriam 24 horas após o atropelamento. Foi um dia de peregrinação por clínicas médicas e radiológicas para descobrir que Nina tinha duas fraturas, uma na bacia e outra, grave, na cabeça do fêmur. Era caso de cirurgia, não havia outra solução. Descobri, naquele momento, que as três cirurgias mais caras para animais domésticos – cães e gatos – são ortopédica, oftálmica e neurológica. Coisa de muitos mil reais.

Dr. Marcelo, o veterinário de Shee, aconselhou que levássemos Nina à Unidade de medicina veterinária Jorge Vaitsman, perto da Mangueira, mantido pela prefeitura e com preços muito acessíveis para a população. Naquela primeira sexta-feira, após a peregrinação por clínicas e com a indicação cirúrgica, Ione acolheu Nina, que passou a conviver com Batata e Spanka, os donos da casa.

Desde a primeira consulta de Nina com o dr. Luiz, cirurgião ortopédico na UJV, no dia 28 de novembro de 2012, voltamos lá para a cirurgia dia 5 de dezembro, primeira revisão dia 12, retirada de pontos dia 19, segunda revisão dia 2 de janeiro de 2013 e hoje, dia 24, quando Nina finalmente tirou os ferros, que Ione encomendou em São Paulo, e ajudaram a consolidar seu osso. Fizemos campanha na internet e na vizinhança, pedimos ajuda financeira e arrecadamos 930 reais, que pagou o mais pesado.

Além da financeira, recebemos ajuda em forma de indignação, incentivo e interesse. Durante dois meses acompanhamos a evolução do estado de Nina que saiu do susto-quase-morte para uma vida alegre e cheia de peraltices. Mesmo com os ferros, Nina já corria atrás do meu colar comprido quando o arrastava pelo chão, curiosa para descobrir o que era aquilo se mexia à sua frente. Ela tem um excelente comportamento com os gatos de Ione, cheia de chamego com Spanka e respeito territorial com Batata.

Agora que linda-Nina está inteira, colada e sem sequelas, alegre e saltitante, passaremos ao segundo degrau de sua vida que é encontrar alguém que mereça conviver com uma gatinha tão especial como ela. Alguém se habilita?