Graves cartas grávidas do exílio

Sempre escrevi cartas. Sempre gostei de lê-las, as minhas, as respostas às minhas, as dos outros – quando permitido, claro – as respostas às dos outros. Sempre escrevi cartas, repletas de saudades, muita curiosidade, com alguma expectativa, prenhes de perguntas. Perguntas para mim mesma, perguntas para os destinatários, perguntas objetivas, perguntas sem resposta.

Sempre gostei de cartas, Paul Eluard a Gala, Fernando Pessoa para vários, Rodolfo Konder para meus pais, Mario de Andrade para Fernando Sabino, correspondências entre Fernando Sabino e Clarice Lispector, Hannah Arendt e Mary McCarthy, Rainer Maria Rilke e Franz Kappus, minha irmã e eu, extratos de vida descritos em pequenos pedaços de papel.

Quando me exilei voluntariamente em Lisboa, nos anos 90, escrevi caminhões de cartas para minha família, depois catalogadas por ordem cronológica e hoje são uma perfeita fotografia daquele período. Nada melhor do que reler uma carta para sentir novamente o gosto, o cheiro, rever o lugar ou situação descrita, o aperto no coração, a sensação de alegria, o que quer que tenha motivado a escrita da missiva. Em alguns momentos, cartas graves, em outros, alegres, em muitos, breves.

No curto espaço de tempo entre o correio a galope e a mensagem instantânea, existiu o correio eletrônico e desse tempo, não tão longe assim, também guardo, em papel impresso, as cartas trocadas por esse meio, com amigos e amores. Elas têm o seu valor, claro, mas nada que substitua a surpresa de pegar o envelope embaixo da porta ao entrar em casa, após um dia exaustivo de trabalho e calor, olhar o remetente, observar o selo ou carimbo, a data e o local da postagem, calcular quanto tempo levou para chegar.

Ai, cartas! Empoeiradas graves cartas grávidas do exílio que me fazem fungar e espirrar agora.

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Dois trechos de cartas que eu gostaria de ter escrito:

Carta de Fernando Sabino para Clarice Lispector – Nova York, 10 de junho de 1946

“Tenho feito descobertas importantes, por exemplo: o pecado é simplesmente tudo o que Cristo não fez. Tenho conhecido sujeitos famosos, por exemplo: Duke Ellington. Tenho tido muita saudade de minha filha. Tenho tido muito pouco dinheiro. Tenho tido muitas oportunidades de ficar calado. Tenho tido muita decepção com os Correios. Tenho tido cansaço, saudade e calma. Tenho bebido muito, muito, muito. Tenho lido os suplementos dominicais. Tenho tido vontade de voltar. Tenho escrito muitas cartas para você. Tenho dormido muito pouco. Tenho xingado muito o Getúlio. Tenho tido muito medo de morrer. Tenho faltado muita missa aos domingos. Tenho tido muita pena de Helena ter se casado comigo. Tenho tido dor de dente. Tenho certeza que não volto mais. Tenho contado muito nos dedos. Tenho franzido muito o sobrolho. Tenho falado muito com os meus botões. Tenho tido muita vontade de brincar. Tenho feito muitas manifestações de apreço ao Senhor Diretor. Clarice, estou perdido no meio de tantos particípios passados.”

Carta de Fernando Sabino para Clarice Lispector – Nova York, 6 de julho de 1946

“Viver devagar é que é bom, e entreviver-se, amando, desejando e sofrendo, avançando e recuando, tirando das coisas ao redor uma íntima compensação, recriando em si mesmo a reserva dos outros e vivendo em uníssono. Isso é que é viver, e viver afinal é questão de paciência.”

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