Reconheci cenas vistas nas ruas. Vi pessoas que levam o celular para o banheiro e só não entram no chuveiro com o dispositivo por motivos óbvios. Vi pessoas cada vez mais cada vez mais solitárias em seu individualismo. Vi pessoas que olham o mundo através de suas câmeras frenéticas, clicando fotos que não serão revisitadas. Vi comunidades e tribos que falam consigo mesmas porque abandonaram o hábito de dialogar, aquela velha interação com alguém. Vi pessoas falando para dentro. Vi pessoas falando para fora, vi pessoas ouvindo apenas o som de suas vozes porque perderam a capacidade de escutar. Vi pessoas tentando alcançar prazeres desamparados porque passaram a esperar demais dos outros e esses nunca chegam nem existem. Vi pessoas que ocupam o lugar que seria para dois na cama. Vi pessoas em caminhos intermináveis na direção do cume desabitado porque lá estariam protegidos das discordâncias nos diálogos que não mais importam. Vi desencanto nos olhos tristes de quem cansou de procurar algo ou alguém que não existe. Ouvi esperança no fiapo de voz insegura de quem acredita que descobriu uma felicidade alternativa. Ouvi trovoadas em céu claro e desânimo em risadas falsas. Vi dor no simples ato de encher os pulmões para respirar e continuar vivendo. Vi um sol que brilhava no campo vazio, porque não havia mais ninguém para apreciá-lo. Vi a imagem fantasiada do outro, produzida pela necessidade de compartilhar algo com qualquer um. Vi a impossibilidade de partilhar a fantasia de um só. Vi tristeza, desilusão e desencontro. Vi pedidos impossíveis. Vi pessoas melancólicas, presas nos estereótipos que criaram para si mesmas. Vi sombras e uma escala de cinza onde predominavam o amarelo e o marrom. Vi a esperança minguar frente a possibilidades utópicas. Vi a insistência no sonho não realizado. Vi tudo isso em Ela. Vi um pouco mais. Me vi também. Desliguei o celular, pedi uma taça de vinho, que chegou com o desejo de a ficção não espelhar a realidade. Não desta vez. Tarde demais.