Reconheci cenas vistas nas ruas. Vi pessoas que levam o celular para o banheiro e só não entram no chuveiro com o dispositivo por motivos óbvios. Vi pessoas cada vez mais cada vez mais solitárias em seu individualismo. Vi pessoas que olham o mundo através de suas câmeras frenéticas, clicando fotos que não serão revisitadas. Vi comunidades e tribos que falam consigo mesmas porque abandonaram o hábito de dialogar, aquela velha interação com alguém. Vi pessoas falando para dentro. Vi pessoas falando para fora, vi pessoas ouvindo apenas o som de suas vozes porque perderam a capacidade de escutar. Vi pessoas tentando alcançar prazeres desamparados porque passaram a esperar demais dos outros e esses nunca chegam nem existem. Vi pessoas que ocupam o lugar que seria para dois na cama. Vi pessoas em caminhos intermináveis na direção do cume desabitado porque lá estariam protegidos das discordâncias nos diálogos que não mais importam. Vi desencanto nos olhos tristes de quem cansou de procurar algo ou alguém que não existe. Ouvi esperança no fiapo de voz insegura de quem acredita que descobriu uma felicidade alternativa. Ouvi trovoadas em céu claro e desânimo em risadas falsas. Vi dor no simples ato de encher os pulmões para respirar e continuar vivendo. Vi um sol que brilhava no campo vazio, porque não havia mais ninguém para apreciá-lo. Vi a imagem fantasiada do outro, produzida pela necessidade de compartilhar algo com qualquer um. Vi a impossibilidade de partilhar a fantasia de um só. Vi tristeza, desilusão e desencontro. Vi pedidos impossíveis. Vi pessoas melancólicas, presas nos estereótipos que criaram para si mesmas. Vi sombras e uma escala de cinza onde predominavam o amarelo e o marrom. Vi a esperança minguar frente a possibilidades utópicas. Vi a insistência no sonho não realizado. Vi tudo isso em Ela. Vi um pouco mais. Me vi também. Desliguei o celular, pedi uma taça de vinho, que chegou com o desejo de a ficção não espelhar a realidade. Não desta vez. Tarde demais.
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Senhoras e senhores: corte final
Um dos melhores filmes a que assisti em 2012 foi Final Cut, no festival do Rio. Desde então, fico atenta a qualquer notícia sobre ele, no circuito, para venda em DVD importado, o que seja, não encontro. Não é possível que nenhum distribuidor tenha se interessado pelo filme, mesmo que fosse para exibir em circuitos alternativos.
Do diretor húngaro György Pálfi, é uma história de amor entre um homem e uma mulher, contada por meio de centenas de recortes de cenas de filmes da vida inteira. Reconhecemos e brincamos de tentar descobrir de que filme aquele recorte pertence. É apaixonante e viciante.
O diretor, juntamente com a roteirista Ruttkay Zsófia, construiu um enredo em que um homem se apaixona por uma mulher e como esse amor cresce e se desenvolve para um casamento e uma família. Na colagem das cenas memoráveis, esse homem é, ao mesmo tempo, Marcello Mastroianni, Brad Pitt e Woody Allen. Sua noiva é Gina Lollobrigida, Audrey Hepburn e Greta Garbo. Todas as fases desde o encantamento inicial estão presentes no filme de 84 minutos.
Saímos do cinema em estado de deslumbramento e a vontade é de pegar cada um dos filmes ali recortados e assistir pela primeira vez ou rever o que foi reconhecido.
A luz do Tom
Estreia hoje o novo documentário de Nelson Pereira dos Santos sobre Tom Jobim, complementação, com fino acabamento, do filme do mesmo diretor, que assistimos em 2012 sobre o maestro. Enquanto no primeiro filme tivemos um recorte de momentos do Rio e da carreira de Tom, embalados por sua música, no segundo travamos conhecimento de histórias por meio de três mulheres fundamentais em sua vida: Helena, Teresa e Ana.
Algumas dessas histórias estão na biografia escrita por sua irmã Helena, mas recebem novo tratamento quando levadas pela câmera para a tela do cinema. Fica fácil o teletransporte para um Rio que não existe mais e para a companhia do compositor da trilha sonora da vida de muita gente, inclusive da minha.
Em um momento em que o Brasil desperta para apreciar a vida de grandes nomes, com vários documentários interessantes e fundamentais para o registro da nossa história, é essencial assistir A Luz do Tom, uma poesia filmada pelo mestre do cinema nacional, que nos proporciona momentos de relaxamento e prazer, conhecimento e reconhecimento.
Florbela
Este ano ganhei de meu primo-Rico o passaporte do festival de cinema do Rio, foram 427 sinopses lidas, cinquenta filmes escolhidos e 28 assistidos. Conseguimos fazer uma maratona digna de anotação e de nota. Ele conseguiu ver mais filmes, alguns que eu gostaria de ter assistido mas não consegui. Dos 28 que assistimos juntos não gostamos de dois, o que mostra que nossas opções foram bem acertadas na maior parte.
Tentei fazer uma lista com os preferidos, mas foram tão diversos, já que nossa escolha se baseou em critérios como dificuldade de entrar em circuito e tema, que resolvi escrever sobre eles à medida que apareça a vontade ou o assunto. Hoje pensei muito em Florbela Espanca e o filme que retrata alguns anos de sua vida me comoveu.
“Os amores de Florbela Espanca” é uma produção portuguesa, dirigido por Vicente Alves do Ó (adoro os nomes portugueses) e mostra a vida da poeta (ela se dizia poeta e não poetisa) a partir da primeira separação e os anos vividos com o segundo marido.
Sempre fui fascinada por sua poesia, à qual fui apresentada muito cedo, quando ainda não conhecia a sua vida angustiada e breve. Ganhei sua fotobiografia, o que só aumentou minha veneração pelo romântico e torturado espírito que morreu no mesmo dia que nasceu, com um intervalo de 36 anos.
O soneto número X da série “he hum não querer mais que bem querer” (Camões), de 1930, hoje embalará meu sono. Que embale o seu também.
“Eu queria mais altas as estrelas,
Mais largo o espaço, o sol mais criador,
Mais refulgente a lua, o mar maior,
Mais cavadas as ondas e mais belas;
Mais amplas, mais rasgadas as janelas
Das almas, mais rosais a abrir em flor,
Mais montanhas, mais asas de condor,
Mais sangue sobre a cruz das caravelas!
E abrir os braços e viver a vida,
‑ Quanto mais funda e lúgubre a descida
Mais alta é a ladeira que não cansa!”
E, acabada a tarefa…em paz, contente,
Um dia adormecer, serenamente,
Como dorme no berço uma criança!
Como era gostoso o meu francês
Cinema sempre foi a maior diversão para a família. Assim como os livros. E a música.
A primeira vez que vi o “Como era gostoso meu francês” foi no cinema, com mamãe e Denise, minha prima. Éramos crianças, o filme era censura livre (sim, era censura, não faixa indicativa), história ficcionada do Brasil e era cinema nacional de primeira grandeza.
Denise e eu entramos na sala de um jeito e saímos de outro. Nunca tínhamos visto tanto homem pelado juntos, na verdade, nunca tínhamos visto homem pelado, meu irmão, mais criança que nós, não contava. Foi um descortinar de um mundo novo, eu caí de amores por Arduíno Colassanti e até hoje lembro de como ficamos entusiasmadas com aquele filme de “adultos”.
No estudo da obra do grande mestre de nosso cinema, Nelson Pereira dos Santos, já tive oportunidade de ver e rever vários de seus filmes que, aos poucos, chegam ao mercado em DVD.
As informações de bastidores das filmagens, obtidas por intermédio do próprio diretor, de sua produtora executiva e em livros sobre sua obra são sempre um ponto a mais, como a questão de ter de pintar diariamente os corpos dos atores com urucum e a semente ser difícil de achar, a trabalhosa preparação do elenco, a construção da imensa taba indígena perto de Paraty, entre outros.
Quando o filme foi lançado no Brasil, em 1972, após difícil argumentação com os censores que não queriam ver homens pelados nas telas, as sessões lotaram, no entanto o público não entendia – naquele momento – quem era o herói da história. De acordo com o próprio Nelson, em entrevista para a Folha de São Paulo, anos depois, “não entenderam que o herói era o índio e não o mocinho, a tal ponto estavam influenciados pelos bangue-bangues de John Wayne”.
O DVD vendido no site da produtora vem com extras sobre as filmagens, a história de Cunhambebe, o índio brasileiro hoje e filmografia de Nelson. Programão imperdível.
Para os fãs, com amor
Na primeira sessão, do primeiro dia em cartaz fui assistir ao novo Woody Allen. Ah, é aquela coisa, né, para quem é fã desde a mais tenra idade e acompanhou várias faces do mesmo autor, Woody é para sempre com amor.
Seu mais recente é uma comédia, para rir bastante, com sua participação como ator em mais um personagem cheio de neuroses – que adoro -, muitas imagens de Roma e tramas paralelas que quase se esbarram. Baldwin se encontrando com ele mesmo trinta anos mais jovem (essa é a minha interpretação) e confirmando que sua escolha fora a mais correta: trocou a insegurança de uma aventura de tirar o fôlego trinta anos antes, por uma vida organizada. Poderá não ter sido tão emocionante, mas terá demonstrado a serenidade dos acertos. As cenas com Benigni, cidadão comum que é alçado ao posto de celebridade sem ter feito nada para isso são um reflexo bem conhecido de nossos dias, vidas expostas nas ruas, nas redes, aqui mesmo. Afinal, o que ele comeu de café da manhã naquele dia não deixa de ser como uma das milhões de postagens de facebook e afins. O cantor de ópera que só canta no chuveiro e as produções – o personagem de Woody é um produtor de musicais “muito à frente de seu tempo”, uma crítica para aqueles que querem reinventar a roda – levadas aos grandes teatros com o tenor (?) pelado dentro de um box de chuveiro e grande orquestra e atores rende aquele tipo de gargalhada pela vergonha alheia. As cenas são ótimas. Penélope Cruz faz quase uma figuração de luxo, mas é Penélope, e o encontro dela com seus clientes em um evento super careta, com famílias conservadoras rende mais risos. Creio ter ouvido alguns risos do tipo “nervosos”, na sala de cinema, como a dizer “já passei por isso” ou “Deus me livre passar por algo semelhante”. Outra cena interessante é a de Milly, que perde-se em Roma e é encontrada por um grande ator italiano que tudo faz para seduzi-la. Ela é casada. Mas será que uma fugidinha com seu ídolo seria considerada infidelidade? Afinal, uma chance como aquela, para pessoas comuníssimas como Milly, não apareceria outra vez… Há quem diga que o filme está repleto de clichés, eu acredito em tarde com poesia, risos, assuntos do dia a dia, Woody – sempre ele -. Faltaram só o vinho e a pipoca. Assim que sair em dvd.