O filme mais bonito

 Desde janeiro nos cinemas, o filme A música segundo Tom Jobim  é classificado como documentário nas categorias de cinema, mas para mim é o filme da vida. Da minha vida.

Em 90 minutos, por meio da música do maestro e do olhar delicado do mestre Nelson, faço uma viagem no tempo, com imagens que começam nos anos 1960 e atravessam três décadas de pura poesia.

Voo no tempo e lembro-me que o vinil do show antológico com Vinícius, Toquinho e Miúcha gastou no antigo aparelho de som três em um, em tardes amenas e ensolaradas passadas em família em Friburgo.

Tempos depois, eu trabalhava em uma empresa de moda que adotou o mico-leão dourado no Zoo do Rio e pediu autorização ao Tom para modificar a letra do refrão de Borzeguim para “deixa o mico vivo” e imprimir em uma camiseta para venda em todas as lojas. Meu xodó até hoje. A jornalista responsável pelo acordo me chamou para irmos à casa de Tom finalizar o contrato, o que não recusei. Naquela noite, cheguei em casa e falei para meu marido na época que nunca mais lavaria minhas bochechas que Tom havia beijado. Emoção de fã no encontro com o ídolo.

Passarim foi o primeiro cd brasileiro que comprei, em uma loja no shopping do Rio, onde encontrei meu pai para jantar. Lembro-me de mostrar a nova mídia, um tipo de vinil metálico em miniatura, tocado só de um lado. Esse cd atravessou oceano e subiu serras, em minhas idas e vindas pela vida. Repousa, hoje, na estante organizada até a próxima investida no aparelho de som.

Anos depois, eu trabalhava em Lisboa, sempre ouvindo música, quando minha amiga me deu a notícia de sua partida. Não pude acreditar. Como assim? Ídolos não morrem nunca. Mamãe confirmou e meu irmão enviou do Brasil tudo o que saiu sobre ele na imprensa, desde reportagens inteiras a emocionadas homenagens. Antonio Brasileiro marcou meus últimos momentos na terrinha, entre caixas de mudança e vida por empacotar.

Em 1996, a publicação da biografia escrita por sua irmã foi lida e relida. Belas histórias que se misturaram às do Rio, cantado e arrebatado por Tom em sua poesia musicada.

E agora, tantos anos depois, Nelson transformou a poesia musicada em poesia filmada, perpetuando os sonhos da menina que nunca deixou de cantarolar minha alma canta / vejo o Rio de Janeiro / estou morrendo de saudades / Rio, seu mar / praia sem fim / Rio, você foi feito pra mim.

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Dedo, pedaços e o Pacífico

Digito com três dedos, em vez de os quatro habituais, porque uma gaveta desregulada e fora do lugar – como está quase tudo ao meu redor – resolveu sangrar a carne. Quando vi, era um líquido quente e vivo que sujava tudo: documentos, papéis, agenda, o chão. Fiquei olhando para aquele dedo pingando e me perguntei como poderia vir tanto sangue de um pedaço tão pequeno. Debaixo da água fria da torneira o sangue continuava a correr e eu, que não tomo aspirina, comecei a fazer contas do tempo de coagulação. Se eu fosse para uma mesa cirúrgica hoje, teria que beber sangue alheio pelas veias, o que abrisse, demoraria a fechar. Como o pedaço do dedo. Na pia, era como se eu estivesse olhando para uma mão que não era a minha, um dedo sem dono, jorrando as lágrimas que meus olhos secos e cansados não vertem. Até tentei chorar, fiz força, fingi ser atriz, não consegui uma lágrima, só o sangue continuava a correr. Fechei a torneira, fiz uma bandagem de lenço de papel e apertei tão forte com o esparadrapo que, se o dedo não caiu por causa da gaveta, vai cair por falta de circulação. Procurei pela casa um óleo esquisito que mamãe diz ser milagroso, não encontrei, continuei com o torniquete, levantei o braço e fiquei com ele levantado até que cansei, pensei em chamar o 911 para ver se costurava minha alma, porque o dedo não tem mais salvação. A ligação é cara (para o 911) e eu ainda não estou bem certa que eles cheguem em pouco tempo, como mostra o filme. A unha estava tão bonitinha, comprida e feita, estragou tudo… Agora tenho um dedo despedaçado, apertado num papel, falta a tipoia, aquela azul, imensa, horrorosa, para compor o visual de ferida de guerra. Cada um vive a sua guerra e as batalhas travadas em 2011 foram violentas, tristes, úmidas, exaustivas, com poucos intervalos para recuperar forças. Acho que o sangue escorrido pelo dedo era parte de meu exército querendo debandar. Estamos todos cansados. Sonhamos, eu, meus dedos e meu espírito, com mar azul e dias de sol aconchegante. Sei lá quando teremos uns dias de licença. O tema guerra é porque assisti aos dez episódios da série The Pacific, uma produção HBO e Dreamworks de 2010, sobre as batalhas dos Marines no Pacífico, durante a Segunda Guerra. Maravilhosa série, principalmente para quem gosta do assunto como eu. No início de cada capítulo, um dos três veteranos ainda vivos – a série é baseda em fatos reais, realíssimos – fazia alguns comentários emocionados sobre o que eles tinham vivido e por que teriam eles sido escolhidos para sobreviver àquilo. Um deles falou que “às vezes, a única coisa que podemos fazer é rezar e esperar”. Rezar e esperar. O bombardeio passar, o sangramento secar, o dia tranquilo chegar.

Filmes em outubro

Filmes vistos ou revistos no último mês:

Um anjo no mar, de Frédéric Dumont – maravilhoso.

Film socialisme, de Godard – faça cara de entendido.

Cleveland versus Wall Street, de Jean-Stéphane Bron – podia ser melhor.

Fora da Lei, de Rachid Bouchareb – muito bom.

Um quarto em Roma, de Julio Medem – perguntem ao meu primo.

Flanders, de Bruno Dumont – exaustivo.

Viúvas sempre as quintas, de Marcelo Piñeyro – muito, muito bom.

Nossa Vida exposta, de Ondi Timoner – hum…

La nostra Vita, de Daniele Luchetti – gostei.

Azyllo muito louco, de Nelson Pereira dos Santos – ontem, hoje e sempre.

Gainsbourg, de Joann Star – gostei.

O retrato de Dorian Grey, de Oliver Parker – é bom, mas dá arrepios.

The Runnaways, de Floria Sigismondi – fraco.

Tropa de Elite 2, de José Padilha – muito bom.

O pequeno Nicolau, de Laurent Tirard – muito bom.

Coco Chanel & Igor Stravinsky, de Jan Kounen – bom.

Vincere, de Marco Bellochio – bom.

O Filho da Noiva, O mesmo amor, a mesma chuva e O segredo dos seus olhos, de Juan Jose Campanella – excelentes.

Ainda falta uma semana para o mês acabar…

Woody Allen

A incumbência proposta por uma amiga de escrever o porquê adoro os filmes de Woody Allen e quais são os meus cinco preferidos parecia bem mais fácil antes de eu realmente colocar a mão na massa. Primeiro, porque escolher somente cinco é uma tarefa quase impossível para quem gosta de tudo o que ele produziu. Até nos filmes que não têm mérito algum para a crítica, eu descubro uma frase, uma cena, um corte que me agradam. Segundo, porque mesmo sendo iguais ou parecidos, são diferentes, sempre há um algo mais que ficou por ser dito, sempre há um mesmo algo que vale ser repetido.

Quando reduzi a minha lista aos cinco filmes a seguir, segui critérios pessoais como os que assisto com mais frequência ao longo dos anos, os que modificaram a maneira de pensar determinado assunto de minha vida, os que têm cenas antológicas das quais me lembro em momentos diferentes: Alice Tate se tornando visível aos olhos enquanto espiava seu affair, Harry descendo no elevador do inferno, Marion recusando o amor de Larry para se casar com um boboca, Annie tentando dar continuidade ao primeiro encontro, de forma totalmente atrapalhada, Chris tendo uma crise de culpa enquanto a mulher Chloe dorme um sono tranquilo e muitas outras.

Além de tudo, o que gosto imensamente nos filmes de Woody Allen são seus diálogos magníficos, com as neuroses e idiossincrasias de todo dia. Não à toa, adoro o texto The Kugelmass Episode, publicado no livro Side Effects, em que Mr. Kugelmass, cansado da vida rotineira que tem, procura um mágico que o transporta para dentro do livro Madame Bovary. A partir daí, Kugelmass, típico judeu entediado na Manhattan do século XX tem uma grande história de amor com Emma Bovary, personagem de Flaubert no século XIX.

Fantasia e realidade neurótica são ingredientes constantes em seus filmes e em minha vida. Adoro os diálogos com as crises familiares que vivemos dia após dia. Amo me reconhecer, à minha família, aos meus amigos nas palavras irônicas e debochadas, em cenas ótimas.

ANNIE HALL – 1977

O universo está se expandindo, mas a vida é agora.

Acredito ter sido o primeiro Woody Allen que assisti. Intensa combinação de comédia, frases irônicas e a ansiedade dos inícios e términos de relacionamentos amorosos. O filme inteiro, editado com fusão de corte de imagens de passado e futuro, é primoroso, mas gosto imensamente de algumas cenas: Alvin Singer (Woody Allen) e Annie Hall (Diane Keaton) estão na fila do cinema e um homem começa a dissertar sobre teorias filosóficas e de comunicação, o que deixa Alvin profundamente irritado com as bobagens. Até que o homem cita Marshall McLuhann de forma errada e Alvin traz o próprio filósofo, que faz uma ponta no filme, para contradizer o homem, olhando e falando com a câmera, como se estivesse falando diretamente para o espectador. Esse recurso é usado por Allen em vários outros momentos. Ao fim da cena, Alvin/Allen olha para a câmera e acrescenta: “se a vida fosse simples assim…”

Outra cena que gosto é quando Alvin e Annie vão “pessoalmente” visitar os amores passados de ambos. Ele debocha de frases dos antigos namorados de Annie e vai transmitindo cultura e conhecimento à sua ainda ingênua namorada.

O desenrolar do primeiro encontro dos dois leva a um diálogo onde cada um fala algo, mas pensa outra coisa e ambas as frases – a falada e a pensada – são mostradas. Quem nunca passou por isso, pensar uma coisa e falar outra?

Em visita a Los Angeles, o casal conhece um empresário da música, look total anos 70, que é vivido por Paul Simon, em atuação surpreendente.

Alvin/Allen transforma o romance com Annie em peça de teatro e assiste ao ensaio. Terminada a cena, vira-se para a câmera e diz: “O que você queria? É minha primeira peça. Sabe como sempre tenta fazer tudo sair perfeito em arte, porque na vida é difícil…”

ANOTHER WOMAN – 1988

“Às vezes me questiono se fiz a escolha certa” (Marion)

Marion (Gena Rowlands) é uma professora de filosofia, escritora bem sucedida e reconhecida por mudar a visão de mundo e a vida de seus alunos. No entanto, tem um total bloqueio em enxergar a sua própria vida: tem uma relação afastada com o irmão, não vê há anos sua melhor amiga de juventude, está em um segundo casamento formal, não tem filhos e um amor que poderia ter sido, mas não foi (Gene Hackman/Larry Lewis). Quando, inesperadamente, ouve as conversas do vizinho terapeuta com seus pacientes, passa a avaliar o que tem sido sua vida até então.

Ela tem um sonho que mistura vários personagens de sua vida, inclusive seu pai que diz para o terapeuta: “Agora que minha vida está chegando ao fim, eu tenho somente arrependimentos. Arrependimento de que a mulher com quem compartilhei minha vida não tenha sido a mesma a quem amei mais profundamente; arrependimento de não existir amor entre meu filho e eu – isso é minha culpa; arrependimento de que talvez eu tenha sido muito duro com minha filha, muito exigente, de que eu não tenha dado carinho suficiente.”

A partir de várias descobertas, Marion resolve modificar sua vida. A cena em que ela lê o livro de Larry e se enxerga como a personagem Helenka é bem bonita. Posso dizer, sem sombra de dúvida, que esse é o filme de Allen que me tocou mais profundamente e, depois dele, mudei muitas coisas.

ALICE – 1990

“O problema não é nas costas. O problema é aqui (aponta para a cabeça) e aqui (aponta para o coração).” (Dr. Yang)

Alice Tate (Mia Farrow) é uma dona de casa rica, católica, casada com Doug (William Hurt) há 16 anos, com quem tem duas filhas. Uma dor nas costas a leva ao Dr. Yang, que tem uma variedade de pós mágicos que a permite ser invisível para enxergar o que de fato acontece em sua vida.

(Dr. Yang): O que você vê?
(Alice): Pinguins. Eles se unem para sempre
(Dr. Yang): É? Você acha que os pinguins são católicos?

O realismo fantástico dessa comédia fez com que eu quisesse um Dr. Yang e seus pós mágicos, sem efeitos colaterais, em minha vida. Quem nunca quis ser um inseto pequenino para ver pessoalmente um acontecimento e descobrir verdades?

DECONSTRUCTING HARRY – 1996

“As palavras mais belas da língua não são ‘eu te amo’. São ‘é benigno’.” (Harry Block)

Harry é um escritor que utiliza passagens literais de sua vida com amigos, mulheres e ex-mulheres em seus livros, causando grande confusão, já que coloca a descoberto tudo o que foi vivido na intimidade. Ele tem discussões com seu alter ego, personagem do livro, que faz uma análise muito mais acurada da vida do que o próprio Harry/Allen consegue enxergar.

(Harry): Eu não vou ficar aqui ouvindo sermões da minha própria criação! Como você sabe tanto?
(Harry/Ken) Eu sou você, um pouco disfarçado, você me deu mais maturidade e um nome diferente…

Muitas vezes, Harry tem um bloqueio criativo e em um conto em que estava trabalhando, Mel (Robin Williams) é um ator que sai do foco, atrapalhando as filmagens e a convivência em família. Todos o enxergam desfocado, o que obriga sua esposa e seus filhos a usarem óculos para voltar a enxergá-lo direito. Ou seja: todos têm que se adaptar para que a harmonia familiar seja reestabelecida.

Cena que adoro: Harry no elevador em direção ao último andar do inferno. Conforme desce, uma voz vai enumerando: “5º andar: agressores, mendigos e críticos literários; 6º andar: extremistas de direita, assassinos e advogados de tv; 7º andar: mídia – andar lotado; 8º andar: criminosos de guerra, evangelistas de tv e membros da Associação Nacional de Rifles; último andar: obrigatória a saída.

Gosto do humor ácido, politicamente incorreto, do personagem que fala o que quer, quando quer e transgride leis socialmente aceitas ou impostas sem que isso o aflija ou o tormente.

MATCH POINT – 2005

“O homem que disse ‘eu prefiro ter sorte a ser bom’ entendeu o significado da vida. As pessoas temem ver como grande parte da vida depende da sorte. É assustador pensar que boa parte dela foge do nosso controle.” (narrador)

Crime e Castigo – Dostoiévski logo de cara, em uma das primeiras cenas com o personagem Chris Wilton/Jonathan Rhys Meyers lendo o livro, fica claro o que virá pela frente.

O que gosto no filme: O texto de abertura, a bolinha de tênis, os gestos meticulosos e estudados de Chris Wilton, o desejo que quase o põe tudo a perder, o plano perfeito, a ação assassina, a aliança que cai do lado certo, apesar de parecer ser lado errado, a conversa com os mortos, o sentimento de culpa, a sorte sempre presente desde o primeiro momento. O Dostoiévski repaginado.

Um filme de Woody Allen sem muito Woody Allen, mas pleno de Woody Allen.

Como parar por aqui? Acho que ainda volto ao assunto e elaboro outra lista. E outra, e outra, e mais outra…

Benjamin

O filme de David Fincher, em cartaz nos cinemas, com Brad Pitt e Cate Blanchett é bom. Já ouvi críticas negativas que atribuo à imagem deslumbrante do ator, conforme os efeitos de maquiagem o vão fazendo rejuvenescer. Ele fica mais jovem do que realmente é e mais bonito. Talvez outro ator escolhido, a crítica fosse menor. Mas o contraste poderia não ser tão forte.

Mas não é somente sobre o filme que quero falar, é sobre o conto em que foi baseado, de F. Scott Fitzgerald, esse sim, magnífico. Dor, solidão, descoberta e abandono se confundem à medida que Benjamin novo-velho se transforma em velho-novo. A contradição entre desejos e consumação de vontades e a capacidade física chega a doer em alguns momentos. No conto, num realismo fantástico, Benjamin já nasce grande e velho. Velho em todos os sentidos. Conforme rejuvenesce o corpo, a mente acompanha sua involução e ele passa, já velho na idade, mas novo no corpo e imaturo no espírito a querer realizar o que não foi possível anteriormente. Situações ridículas e esdrúxulas acontecem àquele que involui. Chega-se a sentir pena, sente-se dor no estômago e a empatia gerada, no sentido psicanalítico da palavra, entre leitor e personagem é inevitável.

Veja o filme, leia o conto, disponível, em inglês, nos sites de obras em domínio público, ou na livraria mais próxima de sua casa. Imperdível.

Rio, 40 Graus

Cópia restaurada de Rio 40 Graus, do cineasta Nelson Pereira do Santos, marco do cinema nacional, em breve em DVDs, perfeita descrição de uma sociedade cuja essência permanece a mesma 53 anos após retratada no filme, cotidiano atual agravado pelos problemas crescentes e violência sem limites. Como se mantêm as mazelas retratadas na trama envolvente, com diálogos ágeis. Primeira vez em que assisti à película na tela grande, no escurinho do cinema, com orgulho pela obra-prima, certo amargor por não ver luz no fim do túnel para a nossa cidade cada vez mais carente e mais difícil de administrar.

Quem nunca viu, veja. É ordem, daquelas coisas que não se pode deixar de fazer na vida. Quem já viu, repita a dose. Não cansa nunca e tem sempre algo mais a descobrir.

Foto: Cartaz do filme