Dedo, pedaços e o Pacífico

Digito com três dedos, em vez de os quatro habituais, porque uma gaveta desregulada e fora do lugar – como está quase tudo ao meu redor – resolveu sangrar a carne. Quando vi, era um líquido quente e vivo que sujava tudo: documentos, papéis, agenda, o chão. Fiquei olhando para aquele dedo pingando e me perguntei como poderia vir tanto sangue de um pedaço tão pequeno. Debaixo da água fria da torneira o sangue continuava a correr e eu, que não tomo aspirina, comecei a fazer contas do tempo de coagulação. Se eu fosse para uma mesa cirúrgica hoje, teria que beber sangue alheio pelas veias, o que abrisse, demoraria a fechar. Como o pedaço do dedo. Na pia, era como se eu estivesse olhando para uma mão que não era a minha, um dedo sem dono, jorrando as lágrimas que meus olhos secos e cansados não vertem. Até tentei chorar, fiz força, fingi ser atriz, não consegui uma lágrima, só o sangue continuava a correr. Fechei a torneira, fiz uma bandagem de lenço de papel e apertei tão forte com o esparadrapo que, se o dedo não caiu por causa da gaveta, vai cair por falta de circulação. Procurei pela casa um óleo esquisito que mamãe diz ser milagroso, não encontrei, continuei com o torniquete, levantei o braço e fiquei com ele levantado até que cansei, pensei em chamar o 911 para ver se costurava minha alma, porque o dedo não tem mais salvação. A ligação é cara (para o 911) e eu ainda não estou bem certa que eles cheguem em pouco tempo, como mostra o filme. A unha estava tão bonitinha, comprida e feita, estragou tudo… Agora tenho um dedo despedaçado, apertado num papel, falta a tipoia, aquela azul, imensa, horrorosa, para compor o visual de ferida de guerra. Cada um vive a sua guerra e as batalhas travadas em 2011 foram violentas, tristes, úmidas, exaustivas, com poucos intervalos para recuperar forças. Acho que o sangue escorrido pelo dedo era parte de meu exército querendo debandar. Estamos todos cansados. Sonhamos, eu, meus dedos e meu espírito, com mar azul e dias de sol aconchegante. Sei lá quando teremos uns dias de licença. O tema guerra é porque assisti aos dez episódios da série The Pacific, uma produção HBO e Dreamworks de 2010, sobre as batalhas dos Marines no Pacífico, durante a Segunda Guerra. Maravilhosa série, principalmente para quem gosta do assunto como eu. No início de cada capítulo, um dos três veteranos ainda vivos – a série é baseda em fatos reais, realíssimos – fazia alguns comentários emocionados sobre o que eles tinham vivido e por que teriam eles sido escolhidos para sobreviver àquilo. Um deles falou que “às vezes, a única coisa que podemos fazer é rezar e esperar”. Rezar e esperar. O bombardeio passar, o sangramento secar, o dia tranquilo chegar.

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2 comentários sobre “Dedo, pedaços e o Pacífico

  1. Como toda boa estoria, apesar do conteudo tragico, houve ‘suspense’. Qual foi a mao, a direita ou a esquerda? Quais as limitacoes? Da pra pedir folga do trabalho, comida na boca e paparicos? melhoras…

  2. Muito bem escrito. Cheguei a visualizar o dedo cortado, o sangue pingando
    na pia. E a dúvida, será que chamo o 911?
    Parabens garota, você vai longe……..tem a quem puchar.!!! Melhoras, bj.

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