Todas as noites ele chegava em casa, vindo do trabalho, e cumpria o mesmo ritual: tirava o paletó e pendurava no cabide, sentava na cama, tirava os sapatos e as meias, levantava, puxava a camisa para fora da calça ainda fechada, abria o zíper, tirava uma perna por vez, dobrava a calça e pendurava junto do paletó. Em seguida, vestia uma bermuda confortável, uma camiseta surrada e se dirigia à cozinha para falar com a mulher. Ele se sentava no sofá em frente à TV, mas ficava olhando para o quadro do menino lendo. A mulher pegava uma fruta para ele comer, enquanto esperava o jantar ficar pronto. A TV contava histórias, mas ele preferia o menino lendo.
O homem era fascinado pelo quadro de cores escuras que tinha um menino deitado de bruços, com um braço apoiando o queixo, lendo um livro. Era capaz de ficar horas admirando a pintura, imaginando qual seria o livro, em que capítulo estaria, quem seria o menino. Dava-lhe nomes. Um dia chegava e dizia boa noite, Heitor. Noutro, o Heitor era Pedro. Ou Gabriel. Ou Mário. Leandro, Heleno, Sergio. Cada um deles tinha personalidade própria e história de vida. Heitor era o menino estudioso, lia para o colégio. Pedro era o menino sorridente, lia porque o pai mandava. Gabriel era festeiro, mas lia por gosto. Mário lia para se encantar com o mundo que não conhecia, Leandro lia para compreender a vida, Heleno para contar as histórias aos amigos e Sergio para passar bem o tempo.
Cada menino fazia parte de sua vida como se fosse real. Além de conversar com eles à noite, o homem sentia saudades deles durante os dias e pensava neles em todos os momentos. Fazia planos e imaginava cenas: Heitor visitaria esse museu comigo; Pedro se encantaria com a vista do alto da montanha; Gabriel se deliciaria com o sorvete de manga; Mário me daria a mão para atravessar a rua; Leandro assistiria a um jogo no estádio reformado, onde trabalhei; Heleno me recordaria histórias; Sergio conversaria baixinho. Todos eram amigos. Eram familiares ao homem, que imaginava a vida com eles. Todos eram o menino lendo.
Uma noite, o homem chegou em casa, cumpriu o ritual da roupa, passou na cozinha e foi para a sala. A mulher, da cozinha, ouviu um barulho seco e forte, como se o marido tivesse escorregado no chão. Ainda na cozinha, ela gritou marido? Marido? Mas ninguém respondeu. Caminhou até a sala com o prato de fruta na mão e não encontrou o marido sentado em frente à TV nem no chão. Andou pela casa, chamando-o, mas era só silêncio. Abriu a porta da rua, perguntou para o porteiro se o marido tinha saído, nada. Sentou no sofá para ligar para os filhos, olhou para o quadro e viu o marido deitado, de olhos fechados, descansando, ao lado do menino lendo.