O frio por dentro

Subo os degraus devagar, carregada de sacolas do supermercado em que estive e onde me dei conta do fim. Não haverá vida, não haverá nada em seguida, não haverá amanhã. Entro, largo tudo na porta, tiro a roupa pesada de dor, escorrego pela parede da sala e choro.

Faz frio. Frio. Sinto muito frio, encolhida no chão do banheiro de casa, que não é aquecido. Em frente ao box, permaneço em cima do tapete, amarfanhado e cheio do sangue que saiu de mim, sangue que expeli como se expulsa um feto. Só uma mulher sabe o que é sangrar em pedaços. Frio. Meu corpo sacode em espasmos, penso novamente que não haverá vida e choro.

Abro os olhos com o sol que se intromete pelas frestas das janelas, sangrei mais, meu sangue gelado de não sentimento, sangue frio. Tudo ao meu redor está marcado pelo cheiro de fim. Da não vida que dei à luz. Jogo as cobertas longe e sento na cama, onde permaneço por muito tempo. Finalmente, arranco os lençóis e coloco em um saco. Enfio os travesseiros em outro saco e jogo-os no lixo. Cama vazia. Corpo vazio.

Visto uma roupa qualquer e começo a limpeza pelo banheiro. Esfrego tudo, como se eliminasse os azulejos e as louças. Vou para o quarto, não abro as janelas, e coloco em sacos tudo o que me faz sentir frio. O frio nos ossos. Lavo as paredes, que ficam com cheiro de cloro, cheiro de limpo.

Encho a banheira com água bem quente que deixa marcas vermelhas pelo meu corpo, encharcado de amargura. Fecho os olhos e mergulho no mar que me levará para longe do frio. Perco o fôlego e emerjo para a realidade embaçada. Minha vida real, pálida e fria.

Casa limpa, casa estranha, casa fria. Abro a porta e saio para abraçar a rua.

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