Amizade

Em conversa recente, tentávamos definir o que é amizade, quem é amigo, o que torna uma pessoa digna de ser alçada ao posto de amigo. Definições surgiram, discussão inflamada no horizonte de uma amizade antiga. Não falei muito naquela noite, mas passei a pensar quais seriam os meus critérios para colocar no pódio esse ser tão essencial. Para mim, amiga é aquela que sabe tudo da sua vida e guarda para a posteridade, para a terapeuta e para a memória falha de quem escreve. Amiga é quem distribui presentes, presença e vinho em hora de dor, sem perguntar se querem ou não. Amigo é aquele que chega ao Rio no domingo fim de tarde e chama para um café na livraria. Amigo é irmão. Amigo pergunta tudo e diz como deve ser feito, para aliviar suas preocupações. Amiga é quem pergunta se você quer ganhar de aniversário aquele presente que nem imaginava. Amiga é quem insiste em chamar para happy hour sexta-feira, mesmo que você quase não vá. Amigo é quem telefona no meio do dia e intima um encontro dos quatro mosqueteiros. Amiga é quem pergunta qual o fim do livro que você ainda não escreveu. Amiga é quem pergunta o que pode fazer por você, qualquer coisa, naquele momento. Amiga é quem compartilha o seu nível de dor e ri junto todos os risos possíveis. Amiga liga no intervalo da novela. Amigo é quem tem a paciência de passar quarenta minutos tentando explicar o que é a hidrodinâmica. Amiga conta o último Woody Allen já visto. Amigas são aquelas que estando longe, queriam estar ao lado. Amigo reboca para o Festival do Rio para maratona de filmes. Amiga reencontra mais de dez anos passados um passado para confortar. Amiga convida para o jantar na Barra e manda ir de táxi por causa do vinho. Amigo manda e-mail que emociona a família toda. Amiga chama a turma, a bagunça e as lágrimas para sua casa. Amiga ajuda a finalizar tese. Amiga de amiga é amiga quando se despenca de longe por duas horas de conversa. Amiga fotografa com a máquina aquilo que está no coração. Amiga vai à missa para um abraço perdido. Amigo telefona lá do outro lado para ouvir sua voz. Amigo ajuda com o conhecimento do mercado. Amiga combina almoço e entende quando você vai embora mais cedo. Amigo tenta contatos mas compreende seu silêncio. Amiga quer te abraçar, mas há um oceano a separar. Amiga manda frases, flores, paz para o espírito. Amigo traz mulher e filhos para fazer bagunça. Amiga almoça com você e sua mãe de última hora. Amiga deixa o puffles dormir com você. Amigo sorri e dá aquele abraço que diz tudo. Amigo ou amiga é um monte de coisas, tudo-junto-agora-mesmo. É quem você não vê há um mês ou quinze anos, mas está lá, ao alcance de seu sentimento de completude. Amigo viaja, retorna, telefona, cozinha, abastece, escreve, explica, conta, encontra, fotografa, combina, aparece, abraça. Amigo existe para fazer a vida melhor.

O Dom

Não sei falar. Quando falo, é demais ou de menos. Quando de menos, não me faço entender. Quando demais, acabo dizendo coisas que dão margem a múltiplas interpretações e, invariavelmente, são ofensivas, nubla o tempo, os olhos, acaba com o dia. E depois para dizer que verde não é vermelho não adianta mais. Já foi dito e interpretado daquela maneira. Mas não era nada daquilo que eu queria dizer. Era algo que passava por aquele caminho, mas fazia um desvio que amenizava a situação. Mas como meu discurso fraco-infantil saiu daquele jeito, ouço o que não mereço ouvir. E aí? E depois? Recolho minha bolsa e passo o resto do dia entre lágrimas e bolo de chocolate. A tristeza é tão grande que a temperatura do corpo cai e eu não sinto calor nesse Rio de Inferno. Ele percebe minha tristeza e me acompanha com o olhar quando vou fungando do quarto para o banheiro. Um amigo diz que não sabe como alguém que se expressa tão claramente na escrita pode dizer tanta bobagem em voz alta. Minha terapeuta dizia que comigo a sessão era dividida em duas partes: o que eu falava no consultório e o que eu levava escrito. Já são dois especialistas na minha humilde pessoa dizendo que algo está errado em minha oratória. Estou investigando um modo de quietude. Quando tiver que argumentar fraco-infantilmente, calar-me-ei. Se for imperativa a minha argumentação, que seja por escrito. Demora um pouco mais, em compensação os olhos permanecerão secos. De ambos os lados.

Carta à Melhor Amiga

Levanto-me num sábado de manhã, preguiçosamente, com gestos pequenos, pés arrastados e olho o tempo lá fora, que insiste em permanecer uma eterna primavera em época de inverno. Demoro um pouco à janela, vejo os carros passarem, buzinas perdidas de gente impaciente nesse dia tão bonito. Continuo com o meu acordar e vou preparar o cereal matinal, hábito iniciado anos antes, em San Diego e que perdura ainda hoje. Abro a porta da rua, onde o jornal O Globo já nos espera, com as notícias de sempre, mas também com o novo caderno “Prosa e Verso”, mais uma pretensão do que real intenção de falar sobre literatura. Mas é ele o disponível e o primeiro lido aos sábados. Vamos lá ver o que temos de interessante por essas páginas.

Despreocupadamente, com todo o tempo do mundo, entre uma colherada e outra do cereal, vou passeando pelas páginas com notícias, lançamentos, resenhas e anúncios de editoras que começam a investir no marketing. Passo pelas páginas sem me prender, mas um perfil familiar me chama a atenção e volto os olhos para o anúncio com a foto da capa de um livro, lançamento de segunda edição, revista e atualizada e percebo que é a história de Nelson. Endireito-me na cadeira e leio, agora, com certa pressa, os dados do livro. É de 1987, escrito por uma jornalista, e já está a venda em todas as livrarias. O que não precisa de muito esforço, acontece. Tomo uma decisão. E um banho rápido. Pego minha mochila. Coloco meus óculos. Ganho a rua sorridente. Vou comprar o livro.

Atravesso cruzamentos barulhentos e chego, ligeiramente ofegante, à Dazibao, uma de minhas diversões prediletas. Entro e a diminuta livraria está cheia de gente que se encontra por lá para conversar aos sábados de manhã. Não presto atenção em ninguém. Quero o livro. Vou direto aos lançamentos que ficam ordenados em cima do balcão, na entrada. Olho, procuro, não vejo. De novo, começo do lado esquerdo e passo por todos os outros livros que não me interessam, oferecidos e entregues, deitados ali em cima. Onde está o livro? Não resisto e chamo a vendedora. Vocês têm o livro com a biografia do Nelson? Temos. Tá aí em cima, na pilha. Não, não tá não. Já procurei. E olho para onde ela apontou e nós duas nos deparamos com um vazio. Como não? Chegou hoje e eu não vendi nenhum! Fulano… Você vendeu o livro do Nelson? Não, eu não… Vocês têm outro exemplar? Não… Só recebemos um… (Como só receberam um? Não sabiam que eu viria aqui comprar hoje de manhã?) Deve estar com algum cliente dentro da loja.

Vou, então, procurar na mão de cada um, olho indiscretamente, com um semblante ameaçador, para ver quem pegou o meu livro. Passo por um casal absorto em suas escolhas, passo por dois homens que conversam animadamente sobre terceiros ausentes, passo por um cabeludo que há dias não toma banho e segura um livro de filosofia na mão. Não está com ninguém. Volto ao ponto de partida. Cadê meu livro? Eles olham as fichas de caixa, olham de novo o balcão, olham para os clientes. A vendedora se demora no cabeludo, chama-o pelo nome e pergunta: Você pegou o livro do Nelson? E ele, com uma voz do mês passado, responde: Tá comigo.

Choque. A cena pára. Lanço faíscas para o homem. Ele me devolve um olhar de triunfo. A vendedora me olha, dizendo que minha busca terminou ali, na mão do sem-banho. A minha cara de decepção é tão grande, que ela me lança um olhar de pena. Agora só semana que vem. Ainda olho em volta, me reorientando, onde estava mesmo e o que vim fazer? Vocês só receberam um exemplar mesmo? Tem certeza? Não tem nenhum no estoque? A vendedora nem se dá ao trabalho de responder, só balança a cabeça negativamente. Tá, (suspiro), obrigada. Eu volto outro dia. Meu sábado está perdido.

Uma semana depois, sábado friozinho, parece que o Rio ameaça entrar num outono besta, mesmo ritual matinal, volto à rua. Dessa vez, sem pressa, passo na farmácia, loja de discos, vídeo, olho vitrines, compro o filtro solar. O último lugar de meu passeio é a Dazibao. Cheia de amargura, lembro a frustração da semana passada, vou me acercando cuidadosamente da vitrine, olho os livros expostos, abro a porta e entro na loja. Novamente passo os olhos, agora sem muito cuidado, pelo balcão, e finjo para mim mesma que nada quero ali, não procuro nada. De repente, sou novamente atraída para o perfil familiar estampado na capa do livro e, de um salto, lanço mão do, enfim meu e só meu, exemplar. Minha vitória. Um sorriso de plena satisfação invade meu rosto e acarinho o livro, como se uma criança fosse. Abro com cuidado, folheio suas páginas e descubro um enxerto com fotografias escolhidas. Olho cada uma, leio as anotações, vejo as datas e chego, então, àquela que me faz rir alto, de puro prazer, uma foto conhecida, de tanto tempo. Compro, enfim o meu livro e alguns outros porque estou feliz. Irei para casa, caminhando contente, abraçada aos livros e começarei a ler a história que conheço um pedaço.