O silêncio da festa

Encontramo-nos no início do mês e fez-se o riso. Quatro carros em caravana desbravaram estradas esburacadas em dia de sol frio para os abraços prometidos, as juras de eternidade, os lamentos da saudade.

Mantive-me afastada dos preparativos para o reencontro familiar após três anos de separação porque não conseguia imaginar como seria a festa que sempre foi, com a ausência de quem sempre esteve. Encolhi-me em meu canto escuro e aguardei, com medo, o dia planejado. Subestimei a vocação para felicidade de minha própria gente.

Foram dias e noites sublimes, repletos de presença nas ausências que sentimos, foram o riso frouxo, a bobagem, a camaradagem, a atenção com o outro, a ajuda, a música e a dança. Foram dias de sol em nosso ano invernal, foi a cantoria, foi a comilança, foi a mágica que sempre nos manteve juntos e ultrapassou obstáculos, desde o início de nosso tempo.

O nosso tempo que começou lá atrás, com muito amor, batuque e crianças correndo, cada uma de castigo em um quarto, banhos de piscina ao entardecer, praias estorricadas pré-filtro solar, namoros e casamentos, a estrela que só piscava até o dia que apagou precocemente e nos deixou juntos para a continuação. Muitos quilômetros a nos separar, pá, tanto mar, tanto mar, mas a festa que aprendemos a fazer é bonita, é bonita e é a vida.

Já sinto saudades de nós.

As conversas de meu pai nos restaurantes da vida

Meu pai adorava o programa de ir a um restaurante ou bar, e ficar horas conversando, bebendo um vinho ou chope, comendo petiscos e uma boa comida. Se encontrava gente conhecida virava uma festa! Era amigo dos garçons, foi a batizados e casamentos das equipes, tratava todo mundo como irmão.

Muito guloso, sempre gostou de conhecer novos pratos e nunca teve pudor em perguntar ao vizinho de mesa, ou ao maitre sofisticado. Certa vez, em Portugal, papai se levantou e não voltou para a nossa mesa. Procuramos e descobrimos papai sentado a uma mesa vizinha, com um casal completamente desconhecido, provando o prato que eles haviam pedido: eram caracóis – como só se servem em Portugal – carninha tenra, em um molho maravilhoso, puxada com um alfinete.

O primeiro restaurante que fui com meus pais foi o Bar Lagoa. Eu era criança e eles eram bem conhecidos por lá, desde os tempos de namorados. Para nós, garçom mal-humorado sempre foi lenda urbana… Adorávamos camarão à milanesa com arroz à grega. E a mostarda especial que não era servida em todas as mesas. Depois mudamos para o bife à milanesa, com salada de batatas. E o chope, claro. Não, claro era o meu, depois que cresci, papai sempre gostou do chope escuro. E de conversar horas a fio, entre saboreados goles.

Há poucos anos, papai, mamãe, meu irmão e eu fomos almoçar no Bar Lagoa. Chegamos cedo para os padrões locais, pelas 13 horas. Ficamos naquela conversa mole, comendo salsichão partidinho com mostarda, patê e torradinhas, bebendo chope, enquanto o ambiente ia enchendo.

Estávamos sentados na parte de dentro, quando mamãe anunciou a entrada de um famoso jornalista que passou por nós e foi até o caixa pegar encomendas. Ficou lá atrás durante alguns minutos, enquanto nós continuamos a conversar distraidamente. Pouco depois, o jornalista começou a caminhar de volta à saída no mesmo passo apressado que havia entrado, mas foi barrado pela mão de papai que o segurou e com aquele jeito bonachão dele, pediu: “continua mandando ver, hein?” Ao que o interceptado abriu largo sorriso e respondeu “pode deixar, vou continuar!” despediu-se e foi embora. Meu irmão e eu, roxos de vergonha, quase paramos embaixo da mesa.

Em 2008, comemoramos meu aniversário lá, fazia tempo que não nos reuníamos naquelas mesas. Foi um grupo grande, amigos e minha prima D estava no Rio com a filhota. Rimos como se o mundo fosse terminar naquela noite. Àquela altura, já sabíamos e aguardávamos desejosos o Encontrão que se realizaria em Porto Alegre dois meses depois. A foto da família reunida naquele ano é maravilhosa.

Para este ano, já estava tudo marcado, ele combinando a reunião familiar com gosto e com ansiedade. Pela alegria, não imaginava que não estaria presente neste julho de lindos dias e noites frias. Fico pensando nos detalhes que vi ou soube e tento imaginar a sua reação. Os risos, as novidades, as músicas, as conversas da vida toda. Ele teria gostado. Muito.

Preciso voltar ao Bar Lagoa e beber um chope por ele.

Serviços péssimos

Ontem almocei com uma amiga e passamos boa parte do tempo comentando o péssimo serviço que as empresas prestam ao consumidor no Brasil. Esse tem sido um tema tão presente nos últimos tempos que de duas, uma: ou os serviços têm piorado em nosso país, ou estamos – os consumidores – percebendo que o nosso direito é maior do que aquilo que efetivamente recebemos.

Há uns sete anos atrás, entrei com uma ação no Procon contra um cartão de crédito. Eu queria pagar, mas eles não queriam receber. Por mais incrível que isso possa parecer. É que era mais vantajoso para eles continuarem a cobrar juros sobre juros – e ganhar a longo prazo – do que negociar comigo e receber logo. E eu não queria dever e sujar meus nome e CPF. No dia da conciliação, apareceu um caixa da agência informando que ele seria o representante do banco. Naquela manhã, o jurídico do banco havia enviado um e-mail para o gerente da agência, obrigando o comparecimento de algum funcionário. Portanto, lá foi um meninote de uns 15 anos – juro que era quanto ele aparentava – representar o banco em mais uma briga na Justiça. Meu advogado chegou a perguntar se o rapaz teria algum poder de negociação e ele respondeu que não. E ainda contou-nos que para o banco tanto fazia, a quantidade de cliente-consumidor que seguia em frente para uma ação na justiça era muito pequena, a maioria desistia por causa da burocracia e do tempo precioso que tal atitude tomaria. Era mais barato para o banco “fechar” os olhos e esperar alguém reclamar e reclamar porque até cair na Justiça, o banco sairia ganhando. Sempre. Fiz o acordo rapidamente, afinal eu queria era pagar a conta para encerrar o caso e me arrependi de não ter ido em frente para a próxima etapa que seria o Tribunal.

Casos como esse continuam acontecendo. Minha amiga do almoço contou que comprou uma geladeira frost free de mil e quinhentos reais que deu problema desde o segundo dia. O técnico deve ter se enamorado por ela ou pela geladeira, pois já a visitou nove vezes. Na última vez, proferiu a pérola: a geladeira frost free só pode ser aberta duas vezes ao dia (!) A geladeira segue errática pelo submundo do degelo automático… Nada é resolvido.

Ontem mesmo à noite, fui com minha mãe a uma loja de roupa feminina. Veja: ganhei de presente de aniversário uma blusa da qual não gostei. Meu aniversário foi há 24 dias atrás. Entramos na loja e falei para a vendedora que nos atendeu que eu gostaria de efetuar uma troca. A vendedora perguntou se havia sido um presente. Respondi que sim. Ela olhou bem a blusa, verificou que a etiqueta da roupa estava no lugar e proferiu a pérola: vou ter que ligar para pedir uma autorização especial porque já se passaram dez dias (!) da data da compra. Eu respondi, já aborrecida, que ela fizesse isso e conseguisse a resposta porque, conforme fosse, eu tiraria ali mesmo o vestido novo que eu estava usando, da mesma marca, e iria pelada pelos corredores do shopping dizendo que aquilo era culpa da loja. Quando ela desligou o telefone, disse outra pérola: que “eles” (nem ousei perguntar quem seriam “eles”) estavam abrindo uma exceção (por que exceção? e por que para mim? “eles” me conheciam?) e eu poderia trocar a roupa. Aquela resposta me embrulhou o estômago e comentei com mamãe o assunto do almoço – o cliente não precisaria passar por determinadas situações, se os atendentes fossem bem treinados e orientados.

Comecei a olhar tudo com muita má vontade, eu queria era sair dali correndo, até que veio uma outra moça, imaginei que fosse a gerente, com outro tom de voz, outra postura, e começou a tentar salvar o que estaria perdido com a boboca anterior. Resultado foi uma troca em que a loja vendeu mais 130 reais. Nada mau para uma quarta vazia, não?

No século XIX, em meu primeiro emprego em uma loja Cantão, a lesson 101 era que cliente quando entrava para fazer troca era oportunidade de venda. Caramba! Quase trinta anos depois tem gente que ainda não descobriu isso!

Uma empresa de consertos de eletrodomésticos, desde 29 de março embroma, marca, dá o cano, me faz perder tempo para consertar uma lava-louça que já encharcou a cozinha três vezes após a saída do técnico. Eles marcaram – mais uma vez – para ontem a partir das 13 horas. O técnico chegou hoje às 16, após seis telefonemas meus. Cinco minutos depois dele chegar, a Central o chamou pelo rádio, falando sobre uma cliente – que pela descrição inicial de fogo nas ventas, achei que era eu – que tinha todas as ligações gravadas, tudo anotado e ia partir para a briga. Ele respondeu que às 17 horas estaria na casa dela. Eu, que estava sentada em frente a ele como uma estátua e de onde só levantei quando ele deu boa noite ao sair, olhei o relógio que marcava 16h10. Pensei: mais uma cliente que vai ficar esperando à toa. Era óbvio que ele não conseguiria chegar 50 minutos depois na casa dela, nem que ela fosse minha vizinha de andar. Passados quinze minutos, o rádio dele tocou novamente com a informação que a cliente não esperaria mais. Ele marcou a visita para amanhã às 11 da manhã. Será que vai cumprir?

O conserto que ele fez aqui foi o que ele deveria ter feito semana passada, se eu não tivesse desgrudado dele como fiz hoje. Era um balanceamento na máquina, que tem que ficar em uma determinada inclinação e a ligação de um plug interno. Eram 18h15 quando ele saiu porta afora, depois de mais de duas horas de conserto e teste para ver se tudo funcionava. Sob meu olhar atento, que nem pisquei enquanto ele esperava. Aprendi que não podemos nos afastar quando um “técnico” – tem que ser entre aspas – está tentando achar o defeito em alguma coisa na casa.

Em outro post vou comentar as Centrais de atendimento ou call center.

Será que morro de fome ou enriqueço se me oferecer como professora de atendimento ao cliente?

Um dia especial

“Foi um dia memorável, pois operou grandes mudanças em mim. Mas isso se dá com qualquer vida. Imagine um dia especial na sua vida e pense como teria sido seu percurso sem ele. Faça uma pausa, você que está lendo, e pense na grande corrente de ferro, de ouro, de espinhos ou flores que jamais o teria prendido não fosse o encadeamento do primeiro elo em um dia memorável.”

Charles Dickens – Grandes Esperanças

 Li o Xexéu hoje. Não li o livro ao qual ele se refere no texto, nem vi o filme, que ainda não foi lançado, mas passei o dia todo tentando imaginar qual seria o meu dia especial. Aquela data que teria mudado tudo em minha vida. Não cheguei a nenhuma conclusão, mas cheguei a um número, o mesmo dia em meses e anos e séculos diferentes: Dia 18 de junho casei. 18 de outubro me apaixonei perdidamente. 18 de maio me reaproximei. 18 de abril ganhei um irmão. 18 de janeiro me formei. 18 de agosto separei. 18 de fevereiro pulei carnaval. 18 de dezembro pedi demissão. 18 de março comecei uma pós. 18 de setembro dancei até o sol raiar. 18 de julho foi o dia mais frio. 18 de novembro viajei. Em outro 18 de maio, Shee Marie nasceu. Em outro de junho, ganhei um relógio. No de fevereiro, vi o último fime com papai. Em abril, comecei a escrever. 18 de agosto nasceu minha irmã. 18 de janeiro acordei inebriada. 18 de junho pulei a fogueira. Em dezembro viajei para não voltar. 18 de setembro velejei em alto mar. 18 de outubro subi a serra. 18 de março recordei. Em julho, meus sobrinhos nasceram. 18 de novembro cozinhei para toda a família. E ainda, 18 de agosto namorei. 18 de janeiro caminhei na praia. 18 de outubro comemorei. 18 de abril fui à livraria. 18 de julho fui ao cinema. 18 de fevereiro jantei sozinha. 18 de dezembro ri até cair. 18 de junho pensei em estudar mais. 18 de setembro ouvi música. 18 de março, aula imperdível. 18 de novembro dirigi até o aeroporto. Foi em um 18 de julho que acordei. Em um 18 de setembro que revivi, um 18 de novembro me fez acreditar novamente, um 18 de janeiro planejei férias divertidas. Finalizando, no 18 de janeiro mergulhei em Ipanema, 18 de fevereiro assisti a um musical, 18 de março chorei de saudade, 18 de abril preparei documentos, 18 de maio encontrei amigos, 18 de junho ainda não chegou. Foram tantos 18, foram tantos dias especiais e em cada um deles eu disse sim para um caminho, sabendo que para o outro seria não. E cada sim dito traçou minha vida até aqui, até agora.

Amizade

Em conversa recente, tentávamos definir o que é amizade, quem é amigo, o que torna uma pessoa digna de ser alçada ao posto de amigo. Definições surgiram, discussão inflamada no horizonte de uma amizade antiga. Não falei muito naquela noite, mas passei a pensar quais seriam os meus critérios para colocar no pódio esse ser tão essencial. Para mim, amiga é aquela que sabe tudo da sua vida e guarda para a posteridade, para a terapeuta e para a memória falha de quem escreve. Amiga é quem distribui presentes, presença e vinho em hora de dor, sem perguntar se querem ou não. Amigo é aquele que chega ao Rio no domingo fim de tarde e chama para um café na livraria. Amigo é irmão. Amigo pergunta tudo e diz como deve ser feito, para aliviar suas preocupações. Amiga é quem pergunta se você quer ganhar de aniversário aquele presente que nem imaginava. Amiga é quem insiste em chamar para happy hour sexta-feira, mesmo que você quase não vá. Amigo é quem telefona no meio do dia e intima um encontro dos quatro mosqueteiros. Amiga é quem pergunta qual o fim do livro que você ainda não escreveu. Amiga é quem pergunta o que pode fazer por você, qualquer coisa, naquele momento. Amiga é quem compartilha o seu nível de dor e ri junto todos os risos possíveis. Amiga liga no intervalo da novela. Amigo é quem tem a paciência de passar quarenta minutos tentando explicar o que é a hidrodinâmica. Amiga conta o último Woody Allen já visto. Amigas são aquelas que estando longe, queriam estar ao lado. Amigo reboca para o Festival do Rio para maratona de filmes. Amiga reencontra mais de dez anos passados um passado para confortar. Amiga convida para o jantar na Barra e manda ir de táxi por causa do vinho. Amigo manda e-mail que emociona a família toda. Amiga chama a turma, a bagunça e as lágrimas para sua casa. Amiga ajuda a finalizar tese. Amiga de amiga é amiga quando se despenca de longe por duas horas de conversa. Amiga fotografa com a máquina aquilo que está no coração. Amiga vai à missa para um abraço perdido. Amigo telefona lá do outro lado para ouvir sua voz. Amigo ajuda com o conhecimento do mercado. Amiga combina almoço e entende quando você vai embora mais cedo. Amigo tenta contatos mas compreende seu silêncio. Amiga quer te abraçar, mas há um oceano a separar. Amiga manda frases, flores, paz para o espírito. Amigo traz mulher e filhos para fazer bagunça. Amiga almoça com você e sua mãe de última hora. Amiga deixa o puffles dormir com você. Amigo sorri e dá aquele abraço que diz tudo. Amigo ou amiga é um monte de coisas, tudo-junto-agora-mesmo. É quem você não vê há um mês ou quinze anos, mas está lá, ao alcance de seu sentimento de completude. Amigo viaja, retorna, telefona, cozinha, abastece, escreve, explica, conta, encontra, fotografa, combina, aparece, abraça. Amigo existe para fazer a vida melhor.

As andanças de Shee

Shee anda exausta dos últimos dois meses. Como todos nós, ainda espera a chegada de quem não chega, a volta de quem chamava ela carinhosamente de Porcaria. Mas era Porcaria em um tom tão afetuoso que ela atendia cheia de graça. O som do elevador a deixa alerta, mas a porta não se abre com ele.

Na casa nova que já é velha conhecida de minha flor, frequentada desde a mais tenra idade, onde ela passou seu primeiro Natal no Rio, em 2003 – tinha um ano e meio e pelo completamente avermelhado, nada desses pelos brancos que se espalham por seu corpinho – pois bem, nessa casa que agora é também seu lar, ela não para quieta. Vai de um lado a outro, seguindo rastros, checando quem chega e quem sai, franzindo o focinho ao menor sinal de invasão, é um cão de guarda! Tanto caminha, tanto anda, tanto presta atenção que perdeu duzentos gramas em sessenta dias e quando chega a noite fica assim, como na foto: derrubada. Ela que vira – sempre! – o focinho quando me aproximo para tirar foto, nem se mexe. Está exausta, louca por um escurinho do cinema e o aconchego de um de nós.

Shee arrumou amigos na vizinhança: Thor, Nick e outros dois que ainda não sei o nome. Eles fazem a maior festa quando a encontram e ela bem gosta do assédio, apesar de fazer cara de paisagem. Quando saímos e não encontramos ninguém, ela fica como numa partida entre Nadal e Federer, olhando de um lado a outro, sem confessar para quem torce. Mas não sei o que lhe deu, que resolveu latir ferozmente para labradores. Quanto maior, mais alto o latido. Temos que mudar de calçada ou encurtar o passeio. Não fazia isso antigamente, é briga nova. Enfim, minha flor já dorme e ronca, daqui a pouco levantará a cabeça para saber se continuo batucando teclas na madrugada.