Friburgo faz parte da minha vida desde minha infância. Fui apresentada à cidade por meus tios e primas, quando o Banco do Brasil achou que lá seria o primeiro posto da carreira de meu padrinho. Tenho fotos em preto e branco, brincando no quintal com as primas, andando de charrete puxada a bode na pracinha, só não tenho dos cavalos, porque morria de medo deles.
Quando meus tios/padrinhos se mudaram de Friburgo para Brasília, o lado daqui da família já estava enamorada da cidade, a melhor, maior e mais bonita das serras do Rio de Janeiro e lá construímos uma parte importante de nossas vidas.
Naquele tempo, a viagem era uma “viagem”, pegávamos o carro e meu pai escolhia qual o caminho a seguir: íamos até à praça XV, onde pegávamos a balsa de automóveis, atravessámos a baía em direção à Niterói, seguíamos pela Alameda São Boaventura em direção a Itaboraí, chegávamos à Rio-Friburgo e subíamos a serra dos nossos sonhos; ou seguíamos para Caxias, rodávamos pela Rio-Teresópolis, entrávamos em Parada Modelo, chegávamos a Cachoeiras de Macacu, passávamos pela casa com persiana do lado de fora da janela e subíamos a serra dos nossos sonhos. A ponte Rio-Niterói ainda não existia.
Na maioria das vezes, a viagem era feita à noite, com o céu cada vez mais estrelado, conforme nos afastávamos das luzes da cidade grande, e eu deitava esticando o pescoço para olhar pelo vidro traseiro do opala e imaginar quem vivia naquelas luzes distantes. Era uma diversão, quando criava histórias de pura magia.
Nos álbuns de fotografias familiares, não há uma data sequer que não tenhamos passado em Friburgo, férias, feriados, nascimentos, mortes, aniversários, começos, descobertas e recomeços. Posso dizer que minha vida, com intervalos, foi passada na cidade, onde ri, chorei, namorei, brinquei, perdi e achei.
Muito tempo depois das andanças de charrete, no meio de umas férias, a família foi a Porto Alegre para os quinze anos de minha prima que, àquela altura, já tinha se mudado mais uma vez por causa de meu padrinho. Era 1979 e quando retornamos à cidade, o impacto visual que tivemos, dias depois da inundação, após chuvas de verão, foi impressionante. Quando chegamos, as ruas já estavam lavadas, o comércio funcionava normalmente, o carnaval estava confirmado, mas a imagem do fusca laranja acorrentado ao poste na Avenida Comte. Bittencourt, perto do Paissandu, ficou marcada para sempre.
Isso foi há 32 anos e ano sim, outro também, vivemos chuvas, inundações e desabamentos de menor ou maior grau. Entre 2003 e 2008, os verões vividos em Friburgo deixaram chuvas, incômodos e alguns estragos. Em 2007, no dia 10 de janeiro, saí de carro e máquina na mão, fotografando a destruição das chuvas de dois dias antes. Revi essas fotos hoje, dia 13 de janeiro de 2011, dois dias depois de uma tsunami pluvial ter arrasado a cidade de minha vida inteira.
Essas chuvas começaram na noite de terça-feira e desde ontem as poucas notícias que leio, ouço e vejo sobre Friburgo são escritas nos pretéritos perfeito e imperfeito, o que me causa uma incômoda estranheza. A cidade está lá, debaixo de lama e detritos, mas está lá. É tempo presente. Ontem consegui falar ao telefone (fixo, os celulares estão fora do ar) e saber algumas notícias, hoje não mais: só ouço aquele tum-tum-tum indefinido de telefone inexistente. A cidade está sem luz, sem água, sem telefones, sem internet, o comércio está fechado, imagino que minha sobrinha não tenha tido aula novamente, mas não consigo falar com ela. A TV não mostra, nem menciona os arredores do centro de Friburgo, o que só aumenta a aflição. Os jornalistas sabem que existe algo além da Praça Getúlio Vargas e do teleférico no Suspiro, se não mencionam é porque nada aconteceu, ou não conseguem chegar lá? Sumidouro entrou na soma dos mortos. E Bom Jardim, Lumiar, São Pedro, Macaé de Cima, Duas Barras? Conselheiro Paulino, Braunes, Cônego, Amparo? Como estão essas localidades e bairros?
No momento em que escrevo, estão ao vivo, na TV, o governador do estado e a presidente do país. Relatam o que já foi relatado, prometem o que já foi prometido, citam prefeitos antigos negligentes, chamam-nos de populistas (?!), discordam de percentuais de repasses de verba em listas de ONGs que acompanham os gastos públicos e comprometem-se com a prevenção unida à reconstrução.
Quem acredita?
Bom… Após nove horas tentando, consegui falar com um número fixo de telefone. Minha sobrinha continua bem, a família em choque, mas com saúde e unida. Acompanharemos os próximos dias e, apesar de já ter vivido muito nesse país, uma parte de mim ainda precisa ter esperança de que algo mudará.
Sua Nova Friburgo devia ser encantadora. Nunca fui, mas imaginei até a viagem com as estrelas, com a persiana pra fora da janela, a serraçao úmida e ao amanhecer, e o fusca!
A minha Friburgo será sempre encantadora, Paulo. Meus sonhos lá repousam. bjs
Friburgo também fez parte da minha infância. Infância interrompida pela catástrofe de 1979. A que levou nossa casa de férias e deixou meu pai apenas na memória. Infância tão maravilhosa que sempre retornei a Friburgo e nunca deixei de passar pelo local da casa. Infância tão mágica naquele lugar que o acidente, apesar de ter sido considerado uma catástrofe, especialmente para minha família, foi para mim apenas uma calamidade da natureza. Meu pai se foi mas me deixou uma vastidão de momentos mágicos da infância. Eu adoro Friburgo e fico muito triste com o que aconteceu recentemente à cidade e à população. Dessa vez alguns parentes que lá vivem, se salvaram, mas estamos de luto juntamente com os que ficaram.
Obrigada por me ouvir,
Erika, os “momentos mágicos da infância”, como vc escreve, são mesmo mágicos e esses não serão nunca varridos de nossa memória. Fico feliz em saber que, desta vez, todos estão bem. Pensemos em como cobrar para que esta tenha sido a última vez em que assistimos tragédias como essas, que acontecem há muitos anos, e que ceifam vidas dos mais queridos.
Fico feliz de saber que, apesar da tragédia, você está bem.
Parabéns pelo site. Você sempre escreveu muito bem.
Bj. Luiz