Se me perguntarem se vivi muito, poderei pensar que não. Mas não foi bem assim. Vivi intensamente cada paixão que me foi dada de presente. Acho que as paixões são presentes que recebemos, também acredito que são escolhas que fazemos. Escolhi viver aquelas e não outras. Sempre houve mais de um caminho e todos escolhi com o coração. Usei tanto meu coração que hoje ele é fraco e bate com a ajuda desse motor que regula seus suspiros. Por muito tempo quem regulou meus suspiros fui eu, agora é essa máquina ao lado da cama que infla e desinfla meu peito.
Comecei a gastar meu coração bem nova, Zezinho fez a primeira cicatriz no músculo em meu peito. Trocou-me por uma caixa nova de lápis de cor que a outra menina deu de presente. Depois dele, a lembrança que tenho é de uma fila de meninos e homens que entraram em meu coração e saíram dele expulsos por mim ou fugidos de mim, não importa, todos deixaram feridas. E tantas feridas depois, meu coração um dia não quis mais, pediu-me para deixá-lo quieto e como eu teimasse em não atendê-lo, estendeu-se no soalho do meu peito e recusou-se a obedecer ao impulso involuntário de bater sozinho. Agora seu uso é estritamente para me manter viva, mas sem vida porque funciona, mal, apenas como músculo, desativou sozinho sua tecla do amor.
Durmo e acordo nesse quarto amarelinho, sou alimentada por um tubinho, cuidada por enfermeiras delicadinhas para que meu coração que já foi grandão, possa seguir batendo em um ritmo ordenado pelos médicos. Já tentei alcançar o botão off, mas não consigo me mexer sozinha, tudo o que tenho são as cicatrizes incapacitantes e paralisantes. De que me vale o funcionamento desse músculo se ele não me permite usá-lo para amar? Posso dizer que a briga foi sangrenta, mas ele não cedeu. Um dia, como eu insistisse em desafiá-lo, jogou-me no chão e deixou-me desacordada por horas. Salvou-me o vizinho, objeto último de meu desafio, que me trouxe para esse quarto em que vivo agora. Nunca mais voltou, o vizinho. O bom samaritano quer um coração inteiro e não um despedaçado como o meu, sem a tecla de amor.