Sou taurina, como minha dona, nasci no dia 18 de maio de 2002, na Ilha do Governador. Com quase dois meses, a sobrinha mais velha de mamy me pegou, subi a serra e fui morar com ela em Friburgo, ou seja, sou praticamente uma friburguense. Minha primeira infância passei em um edifício no centro da cidade, onde fui educada, alimentada e onde aprendi a me cobrir sozinha com os cobertores termocel — aqueles com furinhos, que minha dona compra diretamente na fábrica, no tamanho infantil — e onde me ensinaram a melhor brincadeira da vida: correr atrás de garrafas pet e mastigá-las fazendo muito barulho. Quando ela fura, mamy joga fora imediatamente, com medo que eu engula um pedaço de plástico que poderia ferir meu estômago. Eu não entendo muito porque ela tira de mim a garrafa rasgada, mas acato.
Em meados de 2003, eu tinha quase um ano e meio, quando mamy assistiu pela décima vez aquele filme que ela adora “Melhor impossível”, com Jack Nickolson, e resolveu que queria um cãozinho como o Verdel. Antes de começar a procurar um cãozinho para adotar – minha dona é super a favor da adoção de animais – ficou decidido que eu seria doada para ela. Os motivos exatos não consegui compreender, mas o fato de sair de um apartamento para morar em uma casa com um quintal enorme e horários livres para sair — a porta ficava sempre aberta por minha causa — passear no quintal, brincar com os outros cães, roer as pinhas caídas no terreno e latir no portão — um dos meus passatempos preferidos — foi como chegar no paraíso. Com tantas corridas pelo terreno, desenvolvi uma musculatura forte e mamy falava que eu parecia uma halterofilista. Eu fui operada bem cedo para não procriar — meus meio-irmãos eram machos — e fiquei mais cheinha, mas plena de músculos. Se alguém quisesse irritar minha dona, era só falar: “Como ela é gorda, né?” Ela só faltava xingar a mãe do ofensor. Meus anos de Friburgo foram maravilhosos e eu vinha ao Rio com alguma frequência. Meu primeiro Natal como uma legítima Veiga foi no Rio, onde a foto acima foi tirada. Eu era bem novinha, meu pelo bem avermelhado e tinha muito fôlego. Adorava passear na Lagoa e sentir aqueles cheiros diferentes dos da serra. Uma vez fiquei muito tempo olhando para uma garça, sem coragem de me aproximar. Eu pareço valente e lato muito forte, mas sou a desconfiança em forma de cão. Eu já tinha quase cinco anos quando vim morar no Rio. O paraíso ficou para trás e como diz meu médico, mamy took me from heaven and brought me to hell. Não gosto dele, mas minha dona diz que ele é o máximo. Por causa dele — ou da cidade grande — passei a tomar mais vacinas que na serra e detesto quando ele vem com aquelas agulhas enormes. Tudo bem que ele passa gelo logo em seguida, para eu não ficar dolorida, nem inchada, mas nem assim me convence. Mamy me obrigar a ir lá, não posso fazer nada, mas na única vez em que ele esteve aqui em casa, quando o vi entrando, fiz um escândalo tão grande que o bairro inteiro ouviu. Muita cara de pau dele vir me cutucar em casa!
Daqui a pouco menos de três semanas farei nove anos e já sou uma senhora de meia idade. Ando mais voluntariosa e não tenho mais a paciência de antes com filhotes. Tem um na minha rua que minha dona adora e ele fica pulando na minha frente, se exibindo com sua agilidade de machinho, mas eu olho para o lado e finjo que não é comigo. Não adianta mamy me chamar para a brincadeira, que não vou, empaco no lugar e ainda a faço passar vergonha. Quando quero muito uma coisa, faço essa cara aí ao lado, abro meus olhinhos e corto o coração de quem resolve me negar o pedido. Uma coisa que minha dona acha muita graça é quando ela deita e estica o braço, eu vou lá, deito ao lado e fico passando minha cabeça na mão dela para ganhar carinho. E se ela finge que tá dormindo, eu fico resmungando até ela acarinhar meu pelo. Simples assim. Quando meu tio chega — o irmão de minha dona, que diz que não é tio de cachorro, haha, nem tô aí — faço uma festa louca, lato de alegria e dou pulinhos até ganhar um carinho. Os sobrinhos de minha dona são legais, mas eu tenho um pouco de ciúmes deles com meu tio. Não gosto de ficar sozinha em casa e sempre arrumo uma coisa para demonstrar meu descontentamento: mexo no lixo, faço xixi no jornal, puxo as cobertas de alguma cama ou roo a minha própria. Eu tive uma cama que roí tanto e minha dona foi costurando, até que não sobrou espaço para eu deitar e ela foi dada. E quando eles voltam desses passeios que sou excluída, tô sempre mancando de uma pata. No início, eles ainda caíam na minha chantagem, mas acho que agora já perceberam que é golpe, porque riem e apontam e eu volto a caminhar normalmente. Assim que foi lançado, mamy leu o livro do marley e disse que eu parecia com ele, em forma e força dminuídas, afinal ele era um labrador e eu sou uma dachshund. Bom, um pedaço resumido da minha história está aí e agora vou fazer a cara com queles olhos pidões e resmungar um pouco ao lado de mamy para passearmos antes da chuva. Até breve.