Dez para meia-noite

Domingo de verão, sol derretendo asfalto e ele na cama, não se sentia bem. Parecia um resfriado sem febre, podia ser garganta inflamada pelo entra e sai do ar-refrigerado, não se sentia bem. A família estava reunida em casa, uns conversavam, outros assistiam a qualquer coisa na TV, só ele que não se sentia bem. Na hora do almoço, fez grande esforço para se levantar e se sentar à cabeceira, gostava de todos reunidos, faria tudo por aquelas pessoas, estava pesaroso de não se sentir bem. Terminada a refeição, levantou-se para voltar para cama, não sem antes explicar que não se sentia bem. Todos perguntaram o que era e ele fez por menos, uma indisposição, uma dor no corpo, só não se sentia bem. Fim de tarde, família se despedindo, ele perguntou à filha se não dormiria lá e ela achou melhor voltar para casa pelo trabalho que daria na segunda de manhã. Ele se despediu dos filhos e netos, estava triste pois não se sentira bem todo o dia. Casa vazia, eram dez para meia-noite quando comentou com a mulher que sentia o corpo muito mole, uns arrepios e calafrios, só podia ser uma gripe daquelas, provavelmente não iria trabalhar no dia seguinte, iria descansar, ninguém o faria levantar daquela cama. E não levantou mesmo. Nunca mais.

 

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Para sempre

Entrou na casa escura e caminhou até a cozinha, onde acendeu a luz. Olhou em volta, abriu o armário e pegou um vasilhame plástico com tampa. Lá dentro, depositou, com todo cuidado, a sacola plástica que trazia agarrada ao peito. Guardou o recipiente no congelador, apagou a luz da cozinha e foi para o quarto. Tirou a roupa e resolveu tomar um banho. Aquele foi demorado. Sentou no chão do box, encostou na parede, água escorrendo na cabeça e pelas costas. Ela olhava fixo para as mãos, já enrugadas pelo tempo de água, já enrugadas pelo tempo. Saiu do banho, vestiu um pijama e se entocou embaixo das cobertas na cama. Quase imediatamente caiu no sono e só acordou com a claridade do início da manhã. Ligou a TV e, no jornal matinal, o jornalista comentava alguns detalhes de mais um crime horrendo acontecido no dia anterior. Homem retalhado a faca, corpo encontrado no gramado do cemitério. O morto já estava em seu lugar de destino. Levantou da cama, deixou a TV ligada e, descalça, caminhou até a cozinha. Abriu o congelador, retirou o pote, levantou a tampa, desembrulhou a sacola lentamente. Estava lá o coração do assassinado, ainda bem vermelho, ainda batendo em ritmo só para ela. Aquele coração seria só dela, de mais ninguém.

 

O lado negro da força

Lembrei-me de um dia em que perdi a razão, enlouqueci. Reclamei na rua, atropelei um carro abusado no trânsito, mostrei o sinal fechado para o motorista do ônibus, com dedo em riste, arrastei minha cachorrinha por quilômetros de calçadão, caminhei de cara fechada, não dei conversa para quem fazia gracinhas para minha fofa, continuei firme em minha decisão de andar para espantar demônios. Voltamos. Desafiei a Lei e deixei-a solta na areia, sabendo que um banho seria imperativo mais tarde, buscava a repreensão policial, mas ninguém estava à vista. Ai, acho que enlouqueci. Faz tempo.

A casa de minha infância

A casa de minha infância tem paredes brancas e janelas de peroba-do-campo que meu avô não deixou pintar. A casa de minha infância tem portas almofadadas, lareira com lenha que queima azul para todo mundo olhar como uma T antiga, tem a poltrona do Fasanello que foi consertar e nunca mais retornou, tem mesa comprida com feijoada, arroz soltinho, couve temperada e canjiquinha que minha irmã adora. Na casa de minha infância comemos bolo de chocolate e meu irmão devora seus bombons com recheio variado, embalados em papéis coloridos. A casa de minha lembrança abre seus braços imensos e acolhe a família vinda de longe e amigos de todas as tribos. Na casa de minha lembrança o sol sempre brilha, mesmo entre a bruma da alvorada, aquece corações, pernas, braços e cervejas. A casa de minha infância guarda a trilha da cachaça, desbravada corajosamente pelo meu avô, aos risos escondidos das crianças. Na casa de minha lembrança o jipe atola na lama e só os mais fortes conseguem raiar o dia gargalhando dessas dificuldades. Na casa de minha infância desfilam os personagens da história – veludão azul marinho, a prima enxugando a calça debaixo do chuveiro, o timbau que chora muito antes de Brown se mostrar ao mundo, a estrelinha que pisca, mas não apaga, a avó de maiô marrom, fazendo pose de Bardot descoberta, a mãe linda, loura e poderosa ao sol, o pai com um livro na sombra, impedindo aproximação aventureira, o irmão que joga bola com os homens, o cão fila de 96 quilos, chamado delicadamente de Lobo. O mau. A casa de minha lembrança dorme hoje o sono tranquilo de missão cumprida, mas os ecos familiares vagueiam por aqueles campos para sempre nossos.

Fora de área

Eu queria te falar do meu dia hoje, das últimas semanas, o que tenho feito, notícias boas, sentimentos de luz, que fazem meu rosto brilhar. Eu queria te contar o que se passa em meu coração, o que tem me feito sorrir,  do trabalho, da caminhada na praia.

Como é bom ver o mar, olhar as ondas quebrando, forte, fraca, forte, fraca, crianças correndo e se esparramando na espuma, os times de garotos que chegam para jogar a pelada na areia no fim da tarde, turistas que passeiam ao longo do ano no calçadão, extasiados com tamanha beleza.

Eu queria te contar dos três navios cargueiros que passaram, ao largo, vagarosamente, apitando, enquanto eu estava lá sentada, sem vontade de ir embora. Será que seus tripulantes olhavam para nós, como eu olhava para eles? Para eles, uma visão de areia e concreto, com os prédios da orla, para mim, o mar infinito, milhas e milhas de oceano já descobertos, mas não navegados.

Hoje, vendo o mar, tive vontade de furar suas ondas, receber a energia, tive vontade de sentar na areia, como eu fazia, quando as areias ainda eram limpas, há muito tempo. Eu adoro areia. A sensação de pisar nela e afundar o pé, de ter mais trabalho para caminhar, vencer os metros que separam o calçadão da água. E depois do mergulho, esperar secar em pé, com rosto escondido do sol e sentar na areia, senti-la embaixo de mim. Mas estava frio.

Agora, é esperar o verão, chegar do trabalho com a luz do dia, trocar de roupa, caminhar até a praia, molhar os pés e os pulsos, jogar água na nuca e mergulhar no mar, me soltar, me embrulhar nas ondas e deixar o espírito criança surgir e tomar conta de mim. Voltarei com a alma lavada.

 

Eu queria te falar tudo isso, mas você estava fora de área.

O menino lendo

Todas as noites ele chegava em casa, vindo do trabalho, e cumpria o mesmo ritual: tirava o paletó e pendurava no cabide, sentava na cama, tirava os sapatos e as meias, levantava, puxava a camisa para fora da calça ainda fechada, abria o zíper, tirava uma perna por vez, dobrava a calça e pendurava junto do paletó. Em seguida, vestia uma bermuda confortável, uma camiseta surrada e se dirigia à cozinha para falar com a mulher. Ele se sentava no sofá em frente à TV, mas ficava olhando para o quadro do menino lendo. A mulher pegava uma fruta para ele comer, enquanto esperava o jantar ficar pronto. A TV contava histórias, mas ele preferia o menino lendo.

O homem era fascinado pelo quadro de cores escuras que tinha um menino deitado de bruços, com um braço apoiando o queixo, lendo um livro. Era capaz de ficar horas admirando a pintura, imaginando qual seria o livro, em que capítulo estaria, quem seria o menino. Dava-lhe nomes. Um dia chegava e dizia boa noite, Heitor. Noutro, o Heitor era Pedro. Ou Gabriel. Ou Mário. Leandro, Heleno, Sergio. Cada um deles tinha personalidade própria e história de vida. Heitor era o menino estudioso, lia para o colégio. Pedro era o menino sorridente, lia porque o pai mandava. Gabriel era festeiro, mas lia por gosto. Mário lia para se encantar com o mundo que não conhecia, Leandro lia para compreender a vida, Heleno para contar as histórias aos amigos e Sergio para passar bem o tempo.

Cada menino fazia parte de sua vida como se fosse real. Além de conversar com eles à noite, o homem sentia saudades deles durante os dias e pensava neles em todos os momentos. Fazia planos e imaginava cenas: Heitor visitaria esse museu comigo; Pedro se encantaria com a vista do alto da montanha; Gabriel se deliciaria com o sorvete de manga; Mário me daria a mão para atravessar a rua; Leandro assistiria a um jogo no estádio reformado, onde trabalhei; Heleno me recordaria histórias; Sergio conversaria baixinho. Todos eram amigos. Eram familiares ao homem, que imaginava a vida com eles. Todos eram o menino lendo.

Uma noite, o homem chegou em casa, cumpriu o ritual da roupa, passou na cozinha e foi para a sala. A mulher, da cozinha, ouviu um barulho seco e forte, como se o marido tivesse escorregado no chão. Ainda na cozinha, ela gritou marido? Marido? Mas ninguém respondeu. Caminhou até a sala com o prato de fruta na mão e não encontrou o marido sentado em frente à TV nem no chão. Andou pela casa, chamando-o, mas era só silêncio. Abriu a porta da rua, perguntou para o porteiro se o marido tinha saído, nada. Sentou no sofá para ligar para os filhos, olhou para o quadro e viu o marido deitado, de olhos fechados, descansando, ao lado do menino lendo.