Seu Zé

Todos os dias, antes mesmo do sol raiar, seu Zé estava vestido e pronto para sentar no banquinho, na calçada em frente ao prédio, com o café quente na mão. Bebia devagar, olhava em volta, cumprimentava os passantes, uns mais apressados, outros nem tanto, enquanto esperava Marieta. O ponto de ônibus era, no máximo, a 50 metros de seu posto de observação e a menina passava por ali, uniforme escolar, saia azul, meias brancas quase no joelho, sapatos velhos, porém lustrosos, cabelos presos num rabo de cavalo.

E lá vinha Marieta, olhos para o chão, mochila pesada nas costas, passava em frente a seu Zé e este sempre falava: “Bom dia, Marieta, boa aula!”. Ela nunca respondia e seguia o caminho até entrar no ônibus. Quando chovia, seu Zé ficava na janela de seu pequeno apartamento e desejava a Marieta o bom-dia.

A vida corria assim.

A menina entrava no ônibus, onde encontrava uns colegas de escola e eles estranhavam o fato daquele velho chamá-la de Marieta. “Não sei, cismou comigo, não sou Marieta, não sei como surgiu essa ideia, só o conheço de passar por ali, deixa pra lá o velho doido…” eram as respostas da menina para seus amigos.

Desde a primeira vez em que o homem a vira, chamara-a de Marieta. Ela continuava o trajeto até o transporte e esquecia-se dele até a manhã seguinte.

Certo dia, seu Zé a esperava em pé e com uma caixinha na mão. Queria entregar a Marieta. A menina não quis, fez que não, respondeu que não podia, ele abriu a caixinha e ela viu uma corrente com a imagem de uma moça esculpida numa pedra amarelada. Ele disse que era dela, que segurasse, e deixou a caixa nas mãos de Marieta. Repetiu: “Obrigado, Marieta. Boa aula”.

Na manhã seguinte, antes de seu Zé sair para se sentar no banquinho na calçada, ouviu uma batida forte na porta. Era a polícia. Tinham um documento para encarcerá-lo, até que as investigações de assédio à menina chegassem ao fim. Seu Zé foi para uma cela com uns caras que chamaram-no de velhote sem-vergonha, comedor de menininhas, se fosse a filha deles… enquanto sangravam seu Zé até a morte.

O corpo quebrado e ensanguentado do velho foi retirado da cela e os investigadores entraram na delegacia com o material apreendido na casa humilde. Roupas velhas, porém limpas, uma garrafa de leite pela metade, um álbum de fotografias antigas e uma moldura com a fotografia em preto e branco de uma menina e uma dedicatória: “Para papai, lembrança de minha formatura, Marieta.” Em seu pescoço, o colar com camafeu.

Ato Contínuo

O sinal abriu e o trânsito intenso não permitia a passagem. Joelson ligou a sirene da ambulância vazia, que gritou sua urgência na multidão. Os carros começaram a dar passagem e ele avançou compenetrado. Sempre fazia isso, porque não tinha nenhuma paciência para esperar. A sirene da ambulância era como um salvo-conduto que lhe dava a prioridade esperada. Ele queria chegar logo na garagem e terminar seu turno.

No meio da confusão, com os veículos virando de um lado a outro para sair da frente, sempre acontecia algum acidente menor. Um motociclista que caía, um ônibus que encostava sua lata no carro de luxo da madame, Joelson acompanhava pelo espelho, meio sorriso no rosto, enquanto a agitação ficava para trás.

Estacionou a ambulância na garagem e se encaminhou para o relógio de ponto. Ao lado da máquina, uma nota de vinte reais que ele pegou e guardou no bolso. Caminhou com calma até o vestiário para tirar o uniforme e deu de cara com uma colega perguntando a todos se alguém teria visto vinte reais por ali. Não. Ninguém viu.

Joelson estava de saída quando o supervisor apareceu, chamando-o. Ele achou que fosse pelos vinte reais. Não. Era para ele voltar para a ambulância e fazer mais um traslado urgente, era para ir com a própria roupa, era para ir logo, era para ir. E enquanto cuspia a emergência, Joelson se encaminhou raivoso para a van. Desta vez a equipe com os paramédicos já o esperava e ele não iria sozinho.

Um de seus acompanhantes pediu que ele ligasse a sirene, para abrir caminho e ele respondeu que tinha quebrado à tarde. Foram em silêncio, os médicos contando minutos, a família do precisado contando segundos e Joelson contando passos. Ele, que tinha o mapa da cidade na cabeça, errou a entrada da rua duas vezes, até que pararam na frente de um edifício bacana, todo envidraçado, coisa de rico.

Os médicos correram para o elevador, enquanto Joelson largou a ambulância no meio da rua, com as luzes acesas e girando. Após algum tempo, que ele não sabia precisar, voltaram com os instrumentos, e falaram que tinham chegado tarde.

Joelson sentou no banco do motorista, avisou que tinha consertado o fio solto da sirene, ligou o grito, acelerou, meio sorriso no rosto, enquanto o morto ficava para trás.

Alice

Ela tinha seus demônios particulares. Não eram daquela maneira que vemos em filmes, um anjinho e um demoninho em cima dos ombrinhos das pessoinhas. Eram dois, grandes, do tamanho dela, que andavam com ela o tempo todo.

Alice era o que se costumava chamar “um amor de pessoa”. Educada, atenciosa, falava mansinho, cumpria seus deveres e era discreta. Os amigos adoravam-na e a família era unida. Bastava ela pisar no escritório, que os demos tomavam posse do ser maravilha. Era, no mínimo, grosseira. Na maior parte do tempo era cafajeste mesmo. As histórias são infindáveis.

Com uma equipe de oito pessoas, ela distribuía ordens sem orientação e cobrava aos gritos, quando os funcionários erravam. O texto? Rasgado e jogado pela janela. Acertou alguma coisa? Mérito dela. Atirava o que estivesse em sua mão quando o funcionário entrava sem bater.  Para os telefonemas, ela não estava na maioria das vezes. Mas sua equipe nunca sabia quem devia ser bloqueado na linha, quem podia seguir adiante.

Falava mal dos funcionários o tempo todo e para quem quisesse ouvir. Para quem não quisesse também. Tudo no perímetro da empresa. Nunca um obrigado, nunca um por favor. Certa vez, implicou com a hora que um membro da equipe chegou, chamou e demitiu na hora. Mandou embora aos gritos, não deixou entrar. Costumava usar sua sala para sexo com quem precisava de alguma coisa de seu departamento ou de algum fornecedor, homem, mulher, quem ela desejasse. Ganhava um dinheiro extra também, se não tivesse interesse sexual na pessoa.

O mais estranho de tudo: ela costumava comer a falangeta do polegar da mão direita. Ficava em carne viva. E era feio de olhar aquele polegar na boca, todo babado, o sangue escorrendo e ela continuando a roer.

Um dia, a equipe não aguentou mais as humilhações e foi conversar com a chefe da chefe. Ela foi mandada embora. Para a Austrália. Para pesquisar novos mercados para a empresa. Outras vítimas. Um amor de pessoa.

 

Carta a Dorothy Parker

Tenho 27 anos e carrego The Portable DP comigo como se fosse um livro santo. Para todos os lugares que vou, você vai comigo e tento aprender como me expressar de maneira lírica e irônica ao mesmo tempo. Você foi alguém que eu gostaria de ter sido. Conhecido. Ou não. Sublinho seu-meu livro, marcando as frases que queria ter escrito. Dito. Ou não.

Mostro seu-meu livro para minha professora de literatura, que me responde que nunca a leu, não tem conhecimento de sua existência, não sabe quem foi você. Assim que ela se vira de costas, despejo todo o desprezo do meu olhar em sua nuca. Ela se volta  para mim com um sorriso amarelo e eu olho para seu-meu livro em minhas mãos.

Meu tempo com você é mágico, é iluminado, porém emprestado – como você escreve em suas histórias. Você me conduzirá e me emprestará um pouco da sua ousadia, fundamental para que eu viva minha vida daqui para frente, enquanto eu, atrevida, levarei seu-meu livro até o fim, até que suas páginas amarelas e secas comecem a rasgar. Ou não.

 

Porta-retratos

A aposta em 1957

As amigas duvidaram: “ninguém consegue namorar o Pevê”. Bastou a provocação para a moça linda, pequena, de cabelos curtos e olhos muito sapecas, tomar a decisão de seduzi-lo. “Eu consigo”. Gargalhada geral e ela séria, muito séria. Voltavam da praia para a casa do dr. Paulo, onde todos costumavam se reunir e fazer festas, rapazes sentados na varanda, moças no banheiro se arrumando. Ela pegou um frasco de xampu, desceu as escadas com degraus de mármore, passou por todos os homens e entregou nas mãos do Pevê, pedindo com charme: “Abre para mim?”– Ele abriu.

 

A fúria em 1974

Entraram no restaurante, cheíssimo àquela hora e foram até o bar para esperar mesa. Ele pediu um uísque e, bem mais alto, ficou na frente dela para que ela não fosse empurrada pelos muitos frequentadores que passavam de um lado para o outro. Uma loira cheia de curvas e piscadas com cílios postiços chegou perto dele, pegou o copo que estava em sua mão e já estava pronta para dar o bote no uísque e no marido alheio, quando a pequenina e feroz esposa, de um salto, arrancou o copo da mão da inoportuna e advertiu-a: “O uísque tem dono e o homem também.” – Ele sorriu.

 

A viagem em 1995

O restaurante ficava do outro lado do rio, mais de uma hora de carro. Era um lugar simples, em que os clientes pediam no balcão, arrumavam suas próprias mesas, e quando o prato ficava pronto, o cozinheiro gritava o nome do freguês para buscar o pedido na mesma bancada em que se pegava a bebida. Era uma orgia gastronômica. Ela, com um chope na mão, apreciava a vista. Após muitos pratos, perdeu o marido. Não sabia onde ele estava. Encontrou-o sentado à mesa de um casal jovem, provando a comida deles. “Querida! Você tem que provar esses caracóis! Maravilha!” – Ele aplaudiu.

 

O encontro em 2008

Ano-novo na casa da irmã, família faltando membros, muita emoção na chegada, risos e música e champanhe, muito champanhe. Com mexilhões defumados, ostras e camarões. Lá pelas tantas, ele começou a se sentir mal. Meio enjoado, mistura do calor, da bebida, dos sentimentos, chorou no meio do discurso e as ondas de enjoo aumentaram. A esposa viu, pegou o primeiro vasilhame de inox que encontrou na cozinha e correu para a sala a tempo de aparar o efeito da mistura daquela comoção. Tudo o que estava no estômago foi parar na cumbuca onde eram servidos os pratos mais caprichados da família. “Só não… não… contem pra Renatinha onde vomitei…” – Ele pediu.

Ele pediu a mão. Ela sorriu pra foto. Ele trabalhou dois turnos. Ela pariu dois filhos. Não foi um conto de fadas, mas eles foram felizes para sempre.

 

Estações

Caía uma chuva fina naquele dia cinzento e frio. Ele estacionara o carro em sua vaga, mas continuou sentado em seu interior, sem muita vontade de encarar o vento do lado de fora.

Suspirou fundo, esperou a música acabar, vestiu as luvas e saiu. Começou a subir as escadas que o levariam a seu apartamento, segurando o corrimão com a mão direita, enquanto carregava algumas sacolas de supermercado com a outra.

Abriu a porta da casa e foi até a cozinha deixar as compras. Era bom entrar no ambiente aquecido e deixar o gelo para trás. Tirou as luvas, jogou-as no aparador do corredor e começou a descascar as camadas de roupas. Entrou na sala, onde Ziggy levantou a cabeça, abanou o rabo sem vontade e sem sair da cama. Em outro tempo, ele esperaria na porta de casa, animado.

Pegou uma garrafa de vinho e bebeu a primeira taça de um gole só. Serviu outra. Ligou a música, pegou Ziggy no colo e sentou-se no sofá, onde os jornais do dia estavam espalhados. A casa estava sempre bagunçada desde que ela partira. Ela, que fora seu sol, seu calor, seu riso mais franco, sua cúmplice, partira e, desde então, sua vida era inverno.