A boa-fé cansa. A boa-fé causa problemas. De boa-fé assinei um contrato em que se tudo desse errado para eles, eu pagaria; se tudo desse errado para mim, voltaríamos para o zero. Com boa-fé Marluce fez amizade eterna com Cacilda, louca de pedra, e eu disse: “ela é louca”. Alguns anos depois, a louca virou pedra e Marluce saiu correndo. De boa-fé Ariadne trouxe remédios que não precisam de receita no exterior, e prolongam a vida sofrida de Emília, que tem uma doença incurável, e foi presa pela PF por contrabando de substância proibida pela Anvisa. A boa-fé causa prejuízos emocionais. A boa-fé constrange. Com boa-fé Sofia viajou com uma infecção no pé e medicada. Perdeu parte da viagem, poderia ter perdido o pé ou a vida. A boa-fé provoca medo. A boa-fé faz com que eu acorde acreditando que o dia seguirá seu fluxo honesto, contanto que eu me aliene das notícias dos jornais. A obrigatoriedade faz com que eu vote, porque aí não mais existe boa-fé. A necessidade faz com que eu gaste horas ao telefone com funcionários maltreinados de empresas de serviços, porque aí nunca houve boa-fé. A boa-fé dá trabalho. No entanto, a boa-fé nasceu comigo, cresceu em mim enquanto eu emprestava as bonecas, brincava com as amigas e trabalhava em equipe. A boa-fé fez de mim uma pessoa apatetadamente crente de que o bem prevalecerá. A boa-fé cansa.
Bala perdida
O impacto me jogou no chão, barriga para baixo, pernas em desalinho, vestido levantado, rosto arranhado no asfalto quente, tal como o líquido que escorria pelas minhas costas, mãos e pernas paralisadas pelo medo, olhos fechados pela dor. Passos apressados ao meu redor, berros de gente desconhecida que empurrava o meu grito mudo de volta para a garganta. O tiro não tinha endereço certo, fora disparado para o primeiro alvo que cruzasse a sua trajetória e meus pulmões estavam em seu caminho. Senti um gosto de sangue em minha boca e louca vontade de tossir, impossível em minha imobilidade de terror. O socorro demoraria a chegar e eu seria mais uma estatística. Não haveria tempo de falar o que adiei, de ouvir o que deixei para depois, de olhar o céu estrelado da infância ou ver um arco-íris após a chuva. Consegui abrir um olho e enxerguei um sapato vermelho ao lado de meu corpo. Não era Dorothy.
A imagem encantada
Primeiros momentos à espera do sonho que me levará ao destino de múltiplas faces. Carrego no bolso a imagem encantada que, presenteada com afeto, muda a vibração do ser.
Em conversa com minha irmã, verificamos a diferença de vibração energética no último ano. Antes, o espírito de carregação dizia “tu deves” e agora o espírito de liberdade diz “tu queres”.
Não somente questões inspiradoras do desejo se impõem. Mostram-se, novamente, as garras do “eu quero” que sempre me fizeram andar para frente, viver minha vida de forma encantada, conseguir, muitas vezes, após árdua batalha, meus objetivos, ir e vir, trabalhar com prazer, fazer o que mais gosto, sonhar e concretizar sonhos que muitos sequer tiveram e outros jamais ousaram.
Papel craft
Nas ondas do papel craft embrulham-se livros, objetos e móveis, embalam-se vidas, passadas e futuras, enrolam-se desejos, saudades e esperança, envolvem-se fotografias tiradas há décadas.
Na cor única do papel craft unificam-se os tons de muitas casas, muitas gentes, outras cidades, de muito tempo.
Na impesssoalidade do papel craft depositam-se todas as pessoas que já fui.
Senhoras e senhores: corte final
Um dos melhores filmes a que assisti em 2012 foi Final Cut, no festival do Rio. Desde então, fico atenta a qualquer notícia sobre ele, no circuito, para venda em DVD importado, o que seja, não encontro. Não é possível que nenhum distribuidor tenha se interessado pelo filme, mesmo que fosse para exibir em circuitos alternativos.
Do diretor húngaro György Pálfi, é uma história de amor entre um homem e uma mulher, contada por meio de centenas de recortes de cenas de filmes da vida inteira. Reconhecemos e brincamos de tentar descobrir de que filme aquele recorte pertence. É apaixonante e viciante.
O diretor, juntamente com a roteirista Ruttkay Zsófia, construiu um enredo em que um homem se apaixona por uma mulher e como esse amor cresce e se desenvolve para um casamento e uma família. Na colagem das cenas memoráveis, esse homem é, ao mesmo tempo, Marcello Mastroianni, Brad Pitt e Woody Allen. Sua noiva é Gina Lollobrigida, Audrey Hepburn e Greta Garbo. Todas as fases desde o encantamento inicial estão presentes no filme de 84 minutos.
Saímos do cinema em estado de deslumbramento e a vontade é de pegar cada um dos filmes ali recortados e assistir pela primeira vez ou rever o que foi reconhecido.
Até o próximo carnaval
Carnaval sempre foi assunto sério em família. Brincamos o carnaval desde pequenos, em suas mais diferentes formas, blocos de rua, bailinhos de salão, escola de samba, festa em casa. Papai inventava blocos que nunca saíam de sua imaginação e de sua gaiatice: BBMB foi o Bloco dos bolas murchas das Braunes, um bloco implicante com filhos e sobrinhas adolescentes que sambavam nos bailinhos até o dia amanhecer, seguiam para a canja da sustância, no restaurante do clube, e passavam o dia dormindo, restabelecendo forças para a noite seguinte. Empurra que pega veio depois, ninguém empurrou, o bloco não pegou e ninguém saiu das brincadeiras em casa. Meu padrinho não viajava para férias em família sem o timbau, muitos anos antes do instrumento correr mundo no ritmo da timbalada. Batucava e fazia contraponto com a mão da aliança, era um som único para nós. Eu cresci com o rock na cabeceira, mas carnaval era outra coisa, outro momento, era a nossa folia. Alguns anos depois, papai foi o chef que preparava os melhores sanduíches para depois dos ensaios do Suvaco do Cristo, aos domingos, no Horto. Mangueirense, torcia pela escola como para o próprio time de futebol, sempre com muita parcialidade, chegou a ligar para mim, de férias no México, só para dizer que Mangueira havia sido a campeã daquele ano.
Vivi outros carnavais divertidos em ensaio da Portela, no ensaio do Salgueiro com Bono na pista e meus amigos tentando o suicídio coletivo por insolação ou correndo atrás da calota perdida em direção a Tiradentes em carnaval já relatado aqui. Sassaricando na Glória e com Monobloco na Cinelândia. Vivi muitos carnavais, sinto saudades deles e anseio pelo próximo em que estarei presente.
Faz dois anos que o carnaval passa pela esquina e não me carrega. Vejo a alegria do povo nas ruas, me divirto com algumas fantasias, torço para a chuva não estragar a festa, escolho um livro e fico quieta no meu canto. Quem sabe o próximo me arrebatará.