Alice

Ela tinha seus demônios particulares. Não eram daquela maneira que vemos em filmes, um anjinho e um demoninho em cima dos ombrinhos das pessoinhas. Eram dois, grandes, do tamanho dela, que andavam com ela o tempo todo.

Alice era o que se costumava chamar “um amor de pessoa”. Educada, atenciosa, falava mansinho, cumpria seus deveres e era discreta. Os amigos adoravam-na e a família era unida. Bastava ela pisar no escritório, que os demos tomavam posse do ser maravilha. Era, no mínimo, grosseira. Na maior parte do tempo era cafajeste mesmo. As histórias são infindáveis.

Com uma equipe de oito pessoas, ela distribuía ordens sem orientação e cobrava aos gritos, quando os funcionários erravam. O texto? Rasgado e jogado pela janela. Acertou alguma coisa? Mérito dela. Atirava o que estivesse em sua mão quando o funcionário entrava sem bater.  Para os telefonemas, ela não estava na maioria das vezes. Mas sua equipe nunca sabia quem devia ser bloqueado na linha, quem podia seguir adiante.

Falava mal dos funcionários o tempo todo e para quem quisesse ouvir. Para quem não quisesse também. Tudo no perímetro da empresa. Nunca um obrigado, nunca um por favor. Certa vez, implicou com a hora que um membro da equipe chegou, chamou e demitiu na hora. Mandou embora aos gritos, não deixou entrar. Costumava usar sua sala para sexo com quem precisava de alguma coisa de seu departamento ou de algum fornecedor, homem, mulher, quem ela desejasse. Ganhava um dinheiro extra também, se não tivesse interesse sexual na pessoa.

O mais estranho de tudo: ela costumava comer a falangeta do polegar da mão direita. Ficava em carne viva. E era feio de olhar aquele polegar na boca, todo babado, o sangue escorrendo e ela continuando a roer.

Um dia, a equipe não aguentou mais as humilhações e foi conversar com a chefe da chefe. Ela foi mandada embora. Para a Austrália. Para pesquisar novos mercados para a empresa. Outras vítimas. Um amor de pessoa.

 

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Estações

Caía uma chuva fina naquele dia cinzento e frio. Ele estacionara o carro em sua vaga, mas continuou sentado em seu interior, sem muita vontade de encarar o vento do lado de fora.

Suspirou fundo, esperou a música acabar, vestiu as luvas e saiu. Começou a subir as escadas que o levariam a seu apartamento, segurando o corrimão com a mão direita, enquanto carregava algumas sacolas de supermercado com a outra.

Abriu a porta da casa e foi até a cozinha deixar as compras. Era bom entrar no ambiente aquecido e deixar o gelo para trás. Tirou as luvas, jogou-as no aparador do corredor e começou a descascar as camadas de roupas. Entrou na sala, onde Ziggy levantou a cabeça, abanou o rabo sem vontade e sem sair da cama. Em outro tempo, ele esperaria na porta de casa, animado.

Pegou uma garrafa de vinho e bebeu a primeira taça de um gole só. Serviu outra. Ligou a música, pegou Ziggy no colo e sentou-se no sofá, onde os jornais do dia estavam espalhados. A casa estava sempre bagunçada desde que ela partira. Ela, que fora seu sol, seu calor, seu riso mais franco, sua cúmplice, partira e, desde então, sua vida era inverno.

 

Para sempre

Entrou na casa escura e caminhou até a cozinha, onde acendeu a luz. Olhou em volta, abriu o armário e pegou um vasilhame plástico com tampa. Lá dentro, depositou, com todo cuidado, a sacola plástica que trazia agarrada ao peito. Guardou o recipiente no congelador, apagou a luz da cozinha e foi para o quarto. Tirou a roupa e resolveu tomar um banho. Aquele foi demorado. Sentou no chão do box, encostou na parede, água escorrendo na cabeça e pelas costas. Ela olhava fixo para as mãos, já enrugadas pelo tempo de água, já enrugadas pelo tempo. Saiu do banho, vestiu um pijama e se entocou embaixo das cobertas na cama. Quase imediatamente caiu no sono e só acordou com a claridade do início da manhã. Ligou a TV e, no jornal matinal, o jornalista comentava alguns detalhes de mais um crime horrendo acontecido no dia anterior. Homem retalhado a faca, corpo encontrado no gramado do cemitério. O morto já estava em seu lugar de destino. Levantou da cama, deixou a TV ligada e, descalça, caminhou até a cozinha. Abriu o congelador, retirou o pote, levantou a tampa, desembrulhou a sacola lentamente. Estava lá o coração do assassinado, ainda bem vermelho, ainda batendo em ritmo só para ela. Aquele coração seria só dela, de mais ninguém.

 

O menino lendo

Todas as noites ele chegava em casa, vindo do trabalho, e cumpria o mesmo ritual: tirava o paletó e pendurava no cabide, sentava na cama, tirava os sapatos e as meias, levantava, puxava a camisa para fora da calça ainda fechada, abria o zíper, tirava uma perna por vez, dobrava a calça e pendurava junto do paletó. Em seguida, vestia uma bermuda confortável, uma camiseta surrada e se dirigia à cozinha para falar com a mulher. Ele se sentava no sofá em frente à TV, mas ficava olhando para o quadro do menino lendo. A mulher pegava uma fruta para ele comer, enquanto esperava o jantar ficar pronto. A TV contava histórias, mas ele preferia o menino lendo.

O homem era fascinado pelo quadro de cores escuras que tinha um menino deitado de bruços, com um braço apoiando o queixo, lendo um livro. Era capaz de ficar horas admirando a pintura, imaginando qual seria o livro, em que capítulo estaria, quem seria o menino. Dava-lhe nomes. Um dia chegava e dizia boa noite, Heitor. Noutro, o Heitor era Pedro. Ou Gabriel. Ou Mário. Leandro, Heleno, Sergio. Cada um deles tinha personalidade própria e história de vida. Heitor era o menino estudioso, lia para o colégio. Pedro era o menino sorridente, lia porque o pai mandava. Gabriel era festeiro, mas lia por gosto. Mário lia para se encantar com o mundo que não conhecia, Leandro lia para compreender a vida, Heleno para contar as histórias aos amigos e Sergio para passar bem o tempo.

Cada menino fazia parte de sua vida como se fosse real. Além de conversar com eles à noite, o homem sentia saudades deles durante os dias e pensava neles em todos os momentos. Fazia planos e imaginava cenas: Heitor visitaria esse museu comigo; Pedro se encantaria com a vista do alto da montanha; Gabriel se deliciaria com o sorvete de manga; Mário me daria a mão para atravessar a rua; Leandro assistiria a um jogo no estádio reformado, onde trabalhei; Heleno me recordaria histórias; Sergio conversaria baixinho. Todos eram amigos. Eram familiares ao homem, que imaginava a vida com eles. Todos eram o menino lendo.

Uma noite, o homem chegou em casa, cumpriu o ritual da roupa, passou na cozinha e foi para a sala. A mulher, da cozinha, ouviu um barulho seco e forte, como se o marido tivesse escorregado no chão. Ainda na cozinha, ela gritou marido? Marido? Mas ninguém respondeu. Caminhou até a sala com o prato de fruta na mão e não encontrou o marido sentado em frente à TV nem no chão. Andou pela casa, chamando-o, mas era só silêncio. Abriu a porta da rua, perguntou para o porteiro se o marido tinha saído, nada. Sentou no sofá para ligar para os filhos, olhou para o quadro e viu o marido deitado, de olhos fechados, descansando, ao lado do menino lendo.

 

Pérolas podres

Atiram-te pérolas podres e tu as recebes como habituais. Não mais. Tens já um baú com pérolas podres que de nada te servem. Já causaram dor, já causaram sofrimento, hoje causam enfado e tristeza que tu não mais aceitas. Nada fizestes para mereceres palavras tão duras, carregadas de tamanho desamor. Não mais. As pérolas que não puderes ou quiseres devolver, serão jogadas ao vento para não contaminarem teus dias, teus pensamentos e teu ser. Em contato com o vento, as pérolas arremessadas para teus ouvidos serão transformadas em pombas brancas de paz. És forte e serás mais a cada vez que repetires teu mantra de amor. A cada vez que repelires as pérolas podres, a cada manhã que despertares e sentires que és dona de ti mesma. O teu espírito seguirá livre e forte, tuas atitudes serão positivas e teu sorriso triunfará. Ainda mais.

Pela rua

Vivi a maior parte de meus dias pelas ruas, caminhando sem destino, sem lugar quente para chegar quando escurecesse. Mexi em lixo para me alimentar, convivi com outros invisíveis como eu, me escondi da chuva e me encolhi no frio. Passei a maior parte de meus dias fugindo de gente malvada, que queria me usar para conseguir uns caraminguás, que não me dariam sustento. Muitos olhavam para mim como um cão sarnento, como uma criança remelenta. Alguns atiravam latas em mim como em um cão de rua, como em uma menina sem lar. Um dia peguei barriga. Tudo piorou. Poucos me olhavam com desprezo como para um cão sujo, como para uma menina empiolhada. Pari morto. Deixei o rio levar como leva um filhote de cão ou um feto com cordão. Continuei vagando pelos cantos, cada dia mais fraca, com uma pata com bicheira, com um pé em carne viva. Cada vez mais fraca para conseguir comida, deitei embaixo de um papelão num terreno grande e abandonado como eu. Fiquei lá, enroscada em mim mesma, barriga úmida no chão, tetas inchadas de leite não bebido, cocei o pelo, mexi no cabelo, lambi a pata ferida, toquei o pé mutilado, suspirei e fechei os olhos.