Atiram-te pérolas podres e tu as recebes como habituais. Não mais. Tens já um baú com pérolas podres que de nada te servem. Já causaram dor, já causaram sofrimento, hoje causam enfado e tristeza que tu não mais aceitas. Nada fizestes para mereceres palavras tão duras, carregadas de tamanho desamor. Não mais. As pérolas que não puderes ou quiseres devolver, serão jogadas ao vento para não contaminarem teus dias, teus pensamentos e teu ser. Em contato com o vento, as pérolas arremessadas para teus ouvidos serão transformadas em pombas brancas de paz. És forte e serás mais a cada vez que repetires teu mantra de amor. A cada vez que repelires as pérolas podres, a cada manhã que despertares e sentires que és dona de ti mesma. O teu espírito seguirá livre e forte, tuas atitudes serão positivas e teu sorriso triunfará. Ainda mais.
A que ainda não recebi
Parti apressadamente, sem adeus. Não houve tempo para uma despedida formal, com renovação de juras eternas de amor, nem arrumação de papéis. Na verdade, eu vinha adiando minha partida há algum tempo, mas dessa vez nem eu acreditei que iria mesmo embora, tanto que deixei mala e documentos para trás. Sei que fizemos planos, mas não tive como ficar para aproveitá-los com vocês. Escrevo só agora porque demorei para achar meu lugar, até porque sempre achei que meu lugar era ao lado de vocês. Mas vim na frente para arrumar a casa e deixar tudo pronto. Só peço o seguinte: não se apressem. Precisarei de tempo para ajeitar as coisas. Eu sei que não sou o melhor arrumador do mundo, mas prometo me esforçar aqui. Além disso, nossas conversas, enquanto vocês não vêm, serão valiosas para todos nós e quando nos reencontrarmos será tempo de festa. A tristeza e o choro terão ficado aí. Outra coisa que gostaria de pedir: aproveitem mais a companhia um do outro, os amigos, o sol, a natureza. Sorriam mais. Sinto falta de ouvir suas risadas. E consigo ouvi-las mesmo longe. É, eu sei que vocês vão falar que estão com saudades, eu também sinto. E muita. Cuidem da saúde e sejam felizes. Estou bem e nos veremos em alguns anos. Amo muito vocês. Beijos mil do Papai.
Pela rua
Vivi a maior parte de meus dias pelas ruas, caminhando sem destino, sem lugar quente para chegar quando escurecesse. Mexi em lixo para me alimentar, convivi com outros invisíveis como eu, me escondi da chuva e me encolhi no frio. Passei a maior parte de meus dias fugindo de gente malvada, que queria me usar para conseguir uns caraminguás, que não me dariam sustento. Muitos olhavam para mim como um cão sarnento, como uma criança remelenta. Alguns atiravam latas em mim como em um cão de rua, como em uma menina sem lar. Um dia peguei barriga. Tudo piorou. Poucos me olhavam com desprezo como para um cão sujo, como para uma menina empiolhada. Pari morto. Deixei o rio levar como leva um filhote de cão ou um feto com cordão. Continuei vagando pelos cantos, cada dia mais fraca, com uma pata com bicheira, com um pé em carne viva. Cada vez mais fraca para conseguir comida, deitei embaixo de um papelão num terreno grande e abandonado como eu. Fiquei lá, enroscada em mim mesma, barriga úmida no chão, tetas inchadas de leite não bebido, cocei o pelo, mexi no cabelo, lambi a pata ferida, toquei o pé mutilado, suspirei e fechei os olhos.
Alma escura
O cara era um pessimista e azarado. Nada dava certo para ele, que já estava conformado. E mais que isso: satisfeito. Ele era um pessimista resignado com a vida que levava. Quando as coisas saíam erradas no dia a dia, era nada mais do que a confirmação de seu destino. Ele era tão miseravelmente derrotado que ninguém na família ousaria viajar de avião com o sujeito. Seu carro estava sempre na oficina, consertando alguma batida. Pelo menos uma vez por semana o ônibus que o levava ao trabalho quebrava ou furava o pneu. Nas ruas com entulho, a barata corria em direção ao seu pé. Na lanchonete, o suco pedido se esparramava pelo balcão. A facilidade com que ele derrubava qualquer coisa no chão era assustadora. Atravessava a rua e trombava em alguém que vinha caminhando na direção oposta. Com as roupas, então, parecia um complô: o botão pulava da camisa só para expor sua barriga em público. A calça rasgava na roleta do transporte, a alça da mochila arrebentava quando ela estava cheia e pesada, a sola do sapato abria a boca em dia de chuva.
Na última segunda-feira, ele saiu de casa e fazia sol. Pegou o ônibus e chegou na hora certa no trabalho. Almoçou sem derrubar nada na mesa ou em alguém. Conversou com os colegas sem trocar as palavras, voltou para casa e a TV funcionava no canal escolhido. Quando foi dormir, reparou que sua roupa estava limpa e inteira. Nada de ruim acontecera. Nada do que estava acostumado. Deitou a cabeça no travesseiro e chorou, pois havia sido o pior dia de sua vida.
Mulher
Ela abriu os olhos e ainda não amanhecera. Levantou da cama na penumbra, acendeu a lâmpada pendurada pelo fio, entrou no banheiro descascado e sem enfeites, tomou uma ducha cantarolando. Depois se vestiu, prendeu o cabelo num arrumado coque e passou batom antes de sair. O morro estava mais agitado naqueles dias, mas ela já se acostumara com o medo dormente.
Abriu a porta, deu oi pra vizinha, conversaram sobre o churrasco de aniversário no domingo. Combinaram o que levariam e trocaram ideias sobre as roupas que usariam. Começou a descer a rua, que estava mais movimentada naqueles dias, mas ela já se acostumara com o medo cansado.
Caminhando em seu ritmo, repassou mentalmente o que a esperava no laboratório em que trabalhava. No dia anterior, uma cliente mal-humorada tinha escrito uma reclamação sobre uma das atendentes e ela, como supervisora, teria que resolver o problema com muito jeito. Enquanto caminhava, pensando na resposta, percebeu um número maior de policiais nas vielas que estavam mais cheias naqueles dias, mas ela já se acostumara com o medo incômodo.
Apressou o passo, pois queria falar com a amiga na padaria antes de seguir para o trabalho. O sapato novo, parte do uniforme do laboratório, apertava seu pé e ela pensou que, no fim do dia, teria uma bolha para cuidar. Ouviu o barulho que vinha do alto do morro, que estava mais violento naqueles dias, mas ela já se acostumara com o medo desagradável.
Enquanto andava, sentiu um beliscão nas costas, ao mesmo tempo em que caiu no chão. Fechou os olhos, o sangue escorreu pela calçada que estava mais apinhada naqueles dias, mas ela já se acostumara com o medo da vida.
Eu e o outro eu
Ela abriu os olhos grandes e escuros e sorriu com a boca sem dentes para o homem grande à sua frente. Ele abriu os braços e ela se jogou em total confiança, aninhou-se e nunca mais sairia de sua segurança. Uma bola jogada na direção dos dois desviou a atenção da menina, que levantou a cabeça. – Deita, filhinha, deita – pediu o pai, com carinho, enquanto aconchegava a filha novamente na posição confortável para transportá-la pela areia quente, cheiro de maresia, em direção ao calçadão.
Ela não desgrudava os olhos da TV, assistindo a um filme com monstros violentos e destruidores, e não deu bola para ele que entrou na casa, com cheiro de comida recém-feita. Desligou a TV, pegou a filha, que reclamava, no colo. – Muito violento, filhinha, muito – respondeu ele, quando a menina se queixou de não assistir o final.
Ele saiu do carro e a ajudou a descer, com um vestido longo e comprido, deu um beijo em sua bochecha e pegou sua mão na dele, enquanto caminhavam pela nave da igreja cheia, com cheiro de flores, em direção ao altar. – Seja feliz, filhinha, bem feliz – encorajou o pai, enquanto se dirigia ao lugar reservado a ele na cerimônia.
Ela chegou em casa e o encontrou deitado na cama, coração parado, olho fechado, tempo mudo. Pegou as mãos do pai e as segurou por muito tempo entre as suas. Beijou sua cabeça, com cheiro dos cabelos grisalhos, deitou em seu ombro, e disse só para ele: – Dorme, paizinho, dorme. Em paz e até breve.