Bala perdida

O impacto me jogou no chão, barriga para baixo, pernas em desalinho, vestido levantado, rosto arranhado no asfalto quente, tal como o líquido que escorria pelas minhas costas, mãos e pernas paralisadas pelo medo, olhos fechados pela dor. Passos apressados ao meu redor, berros de gente desconhecida que empurrava o meu grito mudo de volta para a garganta. O tiro não tinha endereço certo, fora disparado para o primeiro alvo que cruzasse a sua trajetória e meus pulmões estavam em seu caminho. Senti um gosto de sangue em minha boca e louca vontade de tossir, impossível em minha imobilidade de terror. O socorro demoraria a chegar e eu seria mais uma estatística. Não haveria tempo de falar o que adiei, de ouvir o que deixei para depois, de olhar o céu estrelado da infância ou ver um arco-íris após a chuva. Consegui abrir um olho e enxerguei um sapato vermelho ao lado de meu corpo. Não era Dorothy.

Terceiras impressões de São Paulo

São Paulo, te digo adeus, pela primeira vez, chorando. Suas ruas iluminadas são chamas apagadas em meu coração. Suas luzes acesas vistas do alto lembram-me o tempo perdido no ar. Choro o meu pranto agora, olho ao redor e não sei de cor a tua música.
Outro dia achei que tinha ouvido a sua voz. Era tão nítido, era tão forte, que cheguei a sonhar – um sonho colorido, multicolor,
nuances diferentes e luzes incandescentes.  Como um capricho inusitado, sonhei que estava frente a frente com você. Não havia mais ninguém, só você. E quando me virei era como se tentasse agarrar o último suspiro, o último olhar não trocado, a esperança que não vingou e enclausurou o coração. Quando olhei de novo, você desaparecera. O abajur aceso, tateei e apaguei a luz.

Segundas impressões de São Paulo

A chuva finalmente parou após três dias e o tempo começa a firmar. A noite cai mais depressa e, no centro da cidade, passos apressados no chão encharcado indicam a chegada do fim de semana. Olho para os lados e tento descobrir aonde todas essas pessoas vão celebrar a sexta-feira, onde estão os bares, as conversas de botequim, a cerveja bem gelada. Rostos fechados, corpos sem balanço, todos com pressa de chegar a algum lugar que ainda não sei. Pelas largas avenidas, milhares de faróis piscam numa busca frenética do porto seguro. Talvez longe dos sons, das sirenes que ouço o dia todo, longe do frio que corta os ossos. Daqui a pouco, só restará o eco dos passos, o eco do tempo no centro. São Paulo… Onde está seu gingado? A fala arrastada nos esses e erres? Cadê o sorriso aberto, sem preocupação? Aqui não encontro as caras conhecidas. Não tem barca que perde o rumo, tem metrô pontual de trinta em trinta segundos. São Paulo não sai, se arruma para sair. São Paulo não vibra, se programa para vibrar. São Paulo não dorme. A cidade me olha com uma superioridade que não aceito, enfrento.

Diferente do Rio, diferente em tudo. Procuro os olhos brilhantes, com sonhos crianças, com esperança de graça, mas não encontro. Procuro o bronzeado moreno, o jogo de bola, o campinho sem grama e vejo edifícios brancos e estádios monumentais. No meio da cidade, olho em volta e não me encontro. Resta esperar um pouco, acenar com a mão e entrar no táxi. Dentro do carro, o motorista me lança olhares furtivos pelo retrovisor, querendo adivinhar de onde venho. Mas segue seu caminho sem aumentá-lo, pois sei por aonde ir.

Chego ao meu destino, pago e agradeço e ele me olha como querendo adivinhar o que faço longe de casa. Entro em uma livraria e olho seus livros, acaricio cada um deles, escolho, pago e saio. Procuro, em três bancas de jornal, cartão postal de São Paulo, mas o que acho são cartões do Cristo Redentor, da Baía de Guanabara.

Pela rua empoçada, caminho imaginando o que fazer. Tento ainda uma vez descobrir os bares e seus habituais, mas desisto. A noite já caiu de toda e tenho um Encontro Marcado com Fernando Sabino.

Infinito enquanto dura

Há quatro anos, acompanhando meu pai em sua consulta médica regular, conversando, ele contou ao médico que estava casado com minha mãe há 46 anos, sua namorada há 51, como ele gostava de enfatizar. Eles assistiam à tv de mãos dadas e liam o pensamento um do outro. Na próxima sexta-feira, dia 20 de julho de 2012, eles completariam 50 anos de casados, Bodas de Ouro. Mamãe havia começado a planejar a festa, mas não deu tempo.

Naquele dia, voltei para casa pensando nessa eternidade de sentimento. Um só amor por mais de cinquenta anos. Qual a fórmula ou como é que eles conseguiam? Não conheço quase ninguém de minha geração que ainda esteja junto de seu primeiro amor, ou em seu primeiro casamento. Frise-se o quase.

Tive grandes amores. Eles foram o que chamo de sucessos finitos. Como escreveu o poetinha Vinícius, repetido à exaustão, “(…) Eu possa dizer do amor (que tive): /que não seja imortal, posto que é chama/ mas que seja infinito enquanto dure.” Meus amores foram infinitos em sua finitude. Não foram muitos, foram grandes. Imensos, maiores que eu mesma. Enquanto duraram, foram o paraíso, e no momento de suas mortes, o inferno. Dores de amores doem. Muito. Repetindo: Muito.

Com o passar dos anos – e dos amores – vamos amadurecendo o amor em nós. Ou eu vou, melhor falar na primeira pessoa. Mas… Talvez seja mais fácil na segunda: Você vai desconfiada/o, coloca mil barreiras, menospreza, fala com você mesma/o que não é bem daquele jeito que a banda toca. Que muita água há de correr e que tudo o que você quer é correr dali. Acende um sinal de Perigo! Piscante, luminoso, vermelho, com uma buzina infernal. Muitas vezes, você simplesmente desiste. Dá muito trabalho, tem kit abacaxi… Poucas outras, paga para ver. A essa altura do campeonato da vida, já sabendo dos riscos que corre. Mas… Sabe lá? Quem desistiu do encontro? Quem desistiu de tentar?

E quando você olha no olho, segura a mão e ouve a palavra-mais-que-perfeita no momento-mais-que-perfeito? É óbvio, que quando a esmola é demais, o santo desconfia, mas se ele estiver distraído na hora? Aí, então, com toda sua capacidade de análise de riscos e oportunidades você faz uso do seu melhor julgamento e mergulha de cabeça em um lago de profundidades desconhecidas.

É assim que surgem e são vividos os grandes amores. Na primeira pessoa do singular. No caso, plural. Ah, já não sei mais… Só sei que sexta que vem, a família reduzida, desfalcada de seu mais generoso participante, jantará em homenagem ao amor que se transforma e, dessa forma, permanece para a eternidade.

 

Um dia em dezembro

Acordei com a sensação de corpo querendo gripe – às vezes o mundo gira tanto que é o corpo que faz a gente parar, de uma forma, ou de outra – e eu querendo dormir. A cama desfeita e os travesseiros macios são um convite ao ócio, mas o dia já começou e o ano finda. Shee olha para mim, levanta as sobrancelhas, bem brancas aos quase dez anos, que dizem: “vamos?”. Vamos. Já na rua procura os amigos, Thor, Nick, Lili, Pingo e não há nenhum à vista. Meu corpo dói. Quero voltar a dormir. Antes de conseguir tomar café, os plings e plongs sonoros de mensagens em suas variantes tecnológicas começam a perturbar meus ouvidos. Logo percebo que estou atrasada para o dia e terei de fazer um esforço para compensar. Poesia me deixa feliz; tento secar as lágrimas da amiga; bronqueio com o amigo que pretende furar compromisso; ligo para a outra que tudo faz para levar multa do guarda ao dirigir com o celular na orelha; sento para me levantar. Ligo para mamãe: “Tô com saudades, demora?” Logo chega. O telefone não para (esse acento faz falta). Continuo o trabalho, não me entendo com a câmera do note, há uma incompatibilidade entre minha paciência e o seu não funcionamento. Ligo o skype, mas não tenho sucesso com a dorminhoca, a câmera decidiu não me mostrar para ninguém. Saio novamente com Shee e dessa vez encontramos Pingo. As festas são intensas, mas breves. O primo fala da festa, o irmão fala do festejo, a amiga fala do almoço, retorno ao trabalho, recebo doce ligação e, enquanto janto, assisto o programa de que gosto e rio, com minha irmã, das situações representadas. Volto ao trabalho, é tarde e já sei que amanhã continuarei com sono.

Dedo, pedaços e o Pacífico

Digito com três dedos, em vez de os quatro habituais, porque uma gaveta desregulada e fora do lugar – como está quase tudo ao meu redor – resolveu sangrar a carne. Quando vi, era um líquido quente e vivo que sujava tudo: documentos, papéis, agenda, o chão. Fiquei olhando para aquele dedo pingando e me perguntei como poderia vir tanto sangue de um pedaço tão pequeno. Debaixo da água fria da torneira o sangue continuava a correr e eu, que não tomo aspirina, comecei a fazer contas do tempo de coagulação. Se eu fosse para uma mesa cirúrgica hoje, teria que beber sangue alheio pelas veias, o que abrisse, demoraria a fechar. Como o pedaço do dedo. Na pia, era como se eu estivesse olhando para uma mão que não era a minha, um dedo sem dono, jorrando as lágrimas que meus olhos secos e cansados não vertem. Até tentei chorar, fiz força, fingi ser atriz, não consegui uma lágrima, só o sangue continuava a correr. Fechei a torneira, fiz uma bandagem de lenço de papel e apertei tão forte com o esparadrapo que, se o dedo não caiu por causa da gaveta, vai cair por falta de circulação. Procurei pela casa um óleo esquisito que mamãe diz ser milagroso, não encontrei, continuei com o torniquete, levantei o braço e fiquei com ele levantado até que cansei, pensei em chamar o 911 para ver se costurava minha alma, porque o dedo não tem mais salvação. A ligação é cara (para o 911) e eu ainda não estou bem certa que eles cheguem em pouco tempo, como mostra o filme. A unha estava tão bonitinha, comprida e feita, estragou tudo… Agora tenho um dedo despedaçado, apertado num papel, falta a tipoia, aquela azul, imensa, horrorosa, para compor o visual de ferida de guerra. Cada um vive a sua guerra e as batalhas travadas em 2011 foram violentas, tristes, úmidas, exaustivas, com poucos intervalos para recuperar forças. Acho que o sangue escorrido pelo dedo era parte de meu exército querendo debandar. Estamos todos cansados. Sonhamos, eu, meus dedos e meu espírito, com mar azul e dias de sol aconchegante. Sei lá quando teremos uns dias de licença. O tema guerra é porque assisti aos dez episódios da série The Pacific, uma produção HBO e Dreamworks de 2010, sobre as batalhas dos Marines no Pacífico, durante a Segunda Guerra. Maravilhosa série, principalmente para quem gosta do assunto como eu. No início de cada capítulo, um dos três veteranos ainda vivos – a série é baseda em fatos reais, realíssimos – fazia alguns comentários emocionados sobre o que eles tinham vivido e por que teriam eles sido escolhidos para sobreviver àquilo. Um deles falou que “às vezes, a única coisa que podemos fazer é rezar e esperar”. Rezar e esperar. O bombardeio passar, o sangramento secar, o dia tranquilo chegar.